Texto/Poesia - Carolina, por Raquel Naveira
- Alex Fraga
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Quinta-feira no Blog do Alex Fraga é dia de texto/poesia com a escrita e poeta de Campo Grande (MS), Raquel Naveira, com "Carolina".
CAROLINA
Raquel Naveira
Observo as fotografias de Carolina. Carolina Augusta Xavier de Novaes, a esposa de Machado de Assis. Vestido escuro, austero, todo fechado. Cabelos pretos, presos em coque. Bonita sim. Séria. Quem teria sido essa mulher que viveu por décadas ao lado do escritor? Era portuguesa, irmã do poeta Faustino Xavier de Novaes, amigo de Machado. Culta, forte, inteligente, oriunda de uma elite intelectual. O namoro com Machado foi, a princípio, reprovado pela família. Ele era mulato e humilde. Seria um rebaixamento cultural. Uma vida de dificuldades financeiras. Mas os apaixonados insistiram, trocaram inúmeras cartas, cheias de declarações amorosas como esta: “Carolina, tu pertences ao pequeno número de mulheres que ainda sabem amar, sentir e pensar. Além disso, tens para mim um dote, que realça os demais: sofreste.” Que sofrimento ela teria passado? Uma decepção amorosa em terras lusitanas? Afinal, Carolina tinha 32 anos quando se casou. Cinco a mais do que Machado. Permanece o mistério.
O certo é que ela foi companheira na vida e na arte. Nada era publicado antes do seu aval, da sua leitura atenta, da sua revisão ao passar os textos do marido a limpo. Foi ela que o apresentou aos autores portugueses, ingleses e clássicos. Amava os romances de Jane Austen e das irmãs Brontë. Era caprichosa com a casa, com o arquivamento dos livros e dos papéis. Carolina deu a Machado a estabilidade emocional necessária para o desenvolvimento de uma extensa obra literária. Era desembaraçada, falante. Transitava bem entre os colegas escritores. Nas crises de epilepsia de Machado, era ela quem o socorria, afastava-o dos olhares curiosos, enxugava o suor de sua testa e a espuma de sua boca. O casal não teve filhos, o que os entristecia. Mas viviam intensamente um para o outro. Machado escreveu: “Não tive filhos, não transmiti a nenhuma criatura o legado de nossa miséria.”
A morte de Carolina em 1904 foi um duro golpe para Machado, que viveu seus últimos dias terrivelmente abatido. Escreveu a Joaquim Nabuco: “Foi-se a melhor parte da minha vida, aqui estou só no mundo. Note que a solidão não me é enfadonha, antes me é grata, porque é um modo de viver com ela, ouvi-la...mas não há imaginação que não acorde, e a vigília aumenta a falta da pessoa amada.” Nessa mesma ocasião, vem a lume o soneto “A Carolina”, uma peça comovente:
Querida, ao pé do leito derradeiro,
Em que descansas dessa longa vida,
Aqui venho e virei, pobre querida,
Trazer-te o coração do companheiro.
Pulsa-lhe aquele afeto verdadeiro
Que a despeito de toda a humana lida
Fez a nossa existência apetecida
E num recanto pôs o mundo inteiro.
Trago-lhe flores, restos arrancados
Da terra que nos viu passar unidos
E ora mortos nos deixa e separados.
Que eu se tenho olhos malferidos
Pensamentos de vida formulados,
São pensamentos idos e vividos.
Imaginei-me na pele de um leitor anônimo relembrando a figura de Carolina, os passos de Machado. Surgiu este poema:
Muitas vezes os vi
No Cosme Velho,
Na casa mergulhada em árvores,
Rosas e murtas,
Carolina vestida de preto,
Machado olhando o regato,
Partilhando o silêncio e as borboletas.
De manhã,
O rosto dele,
Franzino e mulato,
Ficava ao centro da janela,
Debruçado sobre papéis avulsos,
Ora observava os retratos,
Ora os formatos das letras.
Depois caminhava pela rua do Ouvidor,
Entre alfaiates,
Floristas,
Joalheiros,
Cumprimentando a todos, cortês,
Chegava à livraria Garnier
Em busca de um livro francês.
Estava na repartição,
No gabinete,
Nos jantares,
Nas reuniões,
Sempre com sua ironia tranquila,
Cheio de piedade
Por vítimas e algozes.
Seu cotidiano,
Presenciei,
Era simples e burguês,
Mas da mente saíam crisálidas,
Falenas,
Vermes que roíam cadáveres
Em ressacas de pessimismo.
Assisti ao calvário de sua doença:
A ausência,
A boca amarga,
A crise de nervos,
Como se Netuno
Com seu tridente
Abalasse suas carnes de vulcão.
Estava perto
Naquele domingo
Quando ele saltou do bonde
Segurando flores,
Em direção ao cemitério,
Ao túmulo de Carolina,
Ao leito derradeiro
Da amada compreensiva e boa.
Fui eu o leitor anônimo
Que lhe fez a última visita
Bati na porta,
Abriram,
Conduziram-me até ele,
Ajoelhei-me,
Tomei sua mão de mestre,
Beijei-a
E pensei:
“Sou o filho que não tiveste,
Aquele a quem deixaste teu legado:
Teus livros, teu encanto
E a compreensão de nossa miséria”.
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