Texto/Poesia - Animais e Literatura, Raquel Naveira
- Alex Fraga

- 8 de mai.
- 4 min de leitura

Quinta-feira no Blog do Alex Fraga é dia de texto/poesia com a poeta e escritora de Campo Grande (MS), Raquel Naveira, com "Animais e Literatura".
ANIMAIS E LITERATURA
A grande maioria das pessoas, não importa onde vivam nem qual sua ocupação, têm, de uma maneira ou de outra, contato e trato com os animais. O caçador tem de conhecer a maneira de agir da caça; o lavrador deve ter ciência dos hábitos dos animais de sua criação e das criaturas que lhe depredam as lavouras; o pescador precisa saber quando encontrar peixes e como enganá-los. Os habitantes modernos da cidade se deparam com animais: precisam aguentar as baratas da cozinha ou criar um cachorro, um gato, um passarinho.
Em todo mundo, tanto nas tribos primitivas quanto na sociedade moderna, há gente que tem prazer em observar animais. O fato é que partilhamos nosso mundo com outros seres vivos. Gostamos de estar cercados de outros entes que estão, como nós, absorvidos na aventura de viver. Há um senso de admiração e afinidade. Natural que essas impressões sobre os animais sejam descritas e registradas na literatura.
A amizade entre o homem e o cão vem desde a era neolítica. Célebres são suas qualidades como inteligência, dedicação ao dono, lealdade.
Impressionante o papel da cachorra “Baleia” em Vidas Secas, de Graciliano Ramos. Através dela, de suas reações, temos um retrato tocante do sofrimento e da miséria da seca. Logo no início do livro, encontramos os retirantes a caminho “na planície avermelhada, cansados e famintos “. Relata Graciliano: “ Ainda na véspera eram seis viventes, contando com o papagaio. Coitado, morrera na areia do rio, onde haviam descansado, à beira de uma poça: a fome apertara demais os retirantes e por ali não existia sinal de comida. Baleia jantara os pés, a cabeça, os ossos do amigo e não guardava lembranças disto. Agora, enquanto parava, dirigia as pupilas brilhantes aos objetos familiares, estranhava não ver sobre o baú de folha, a gaiola pequena onde a ave se equilibrava mal”.
Há assim uma personificação do animal. Baleia é reflexo do comportamento da família de retirantes, mas só através dela seríamos realmente sensibilizados para o drama das pessoas.
O capítulo “Baleia” que descreve sua morte é o auge lírico do romance. Fabiano resolve matá-la por misericórdia e ela luta pela vida, resiste cheia de angústia até que encosta a “cabecinha fatigada na pedra”. “Acordava feliz num mundo cheio de preás. O mundo ficaria todo cheio de preás, gordos, enormes”.
Já é folclórica a preferência da escritora Lygia Fagundes Telles por gatos, esses felinos fidalgos, elásticos, misteriosos. Várias são as fotos da autora com seu gato de estimação. Ela mesma é uma gata, uma feiticeira arguta e clássica. O gato Rahul é o alter-ego da decadente atriz Rosa Ambrósio, no romance As horas nuas.Longos são os monólogos do lúcido gato observando as pessoas como neste trecho: “Rosa piscou para mim através do espelho”. “Está me namorando, Rahul ?” “Não posso, querida, você mandou-me castrar, respondi. Descansei o focinho no banco acetinado, ela poderia me poupar. Mas quem não poupa nem a si mesma não iria agora poupar um gato”.
E os cavalos? Que seres fogosos, musculosos, selvagens e livres! Quanta massa e equilíbrio no lombo, nas patas, no pescoço! Que graça no meneio da crina e da cauda! Bela a amizade entre os personagens Juca Mulato e o cavalo Pigarço no poema Juca Mulato, de Menotti Del Picchia. Na hora da dor, da mágoa de um amor impossível, Juca desabafa conversando com Pigarço: “Pigarço: a dor que me aquebranta./Quando lembro o olhar que adoro/ e que nunca esquecerei./ Ai! Sinto um nó na garganta/ e choro,/eu que até chorar não sei...”
Incrível o conhecimento de João Guimarães Rosa sobre a natureza! Às vezes releio os contos de Sagarana anotando nomes e locuções adjetivas referentes a bichos e plantas. Em O burrinho pedrês enumera todo tipo de gado: garrote, bezerro, boi pintado, barroso, preto, mocho, muar, zebu, vaca bruxa, china... Em A hora e a vez de Augusto Matraga, os bichos nas paisagens marcam as estações e as mutações na evolução da conversão de Augusto para o Bem, dolorida conversão entre “cantigas miúdas de bichinhos mateiros e os sons dos primeiros sapos”. Marcante aquela manhã em que nhô Augusto “saiu para o terreiro e desconheceu o mundo: viu um bando de maitacas verdinhas , grulhantes , gralhantes”, “maracanãs fanhosas”, “ o sol ia subindo por cima do voo verde das aves itinerantes”. Esse voo das aves faz com que Augusto tome a decisão de mudar, de também partir, em busca de si mesmo.
Uma vez, escrevi o poema “Animais de estimação”:
Era um coelhinho branco,
Os olhos injetados de sangue,
As patas de canguru;
Afagava o pelo lustroso,
Segurava com força as orelhas trêmulas.
Era um peixinho delicado,
A cauda em leque cristalino,
As mandíbulas despregando bolhas;
Ela observava o aquário,
Jogava miolo de pão,
Atirava cascalho colorido.
Era um pônei dourado,
De músculos rijos,
Uma figura anã;
Ela enfeitava com flores seu pescoço,
Penteava a crina amarela,
Mostrava-lhe o pôr-do-sol.
O coelhinho morreu de peste.
O peixinho virou um cadáver estufado.
O pônei foi vendido.
Ela, que tinha sede de amar,
Cresceu,
Fez-se mulher
E havia os homens.
Quando vejo minha cachorrinha, a Lady (parece aquela cachorrinha do poema de Vinícius de Moraes em A arca de Noé: Pode haver coisa no mundo mais branca, mais bonitinha/ Do que a tua barriguinha/ Crivada de mamiquinha?), penso que vale a pena viver para conhecer e usufruir do amor de uma criatura meiga e quente como ela.
BIBLIOGRAFIA
BIBLIOTECA DA NATUREZA- Life. Rio de Janeiro: José Olympio, 1971. (Comportamento Animal).
DEL PICCHIA, Menotti. Juca Mulato. 42. ed [s.1.: s.n.], [s.d.]. (Edições de Ouro).
MORAES, Vinícius de. A arca de Noé .9.ed. São Paulo: Companhia das Letras, 1996.
RAMOS, Graciliano. Vidas Secas. 62.ed. Rio de Janeiro: Record,1992.
ROSA, Guimarães João. Sagarana. 23.ed. Rio de Janeiro: José Olympio, 1980.
TELLES, Fagundes Lygia. As horas nuas. Lisboa: Livros do Brasil,1990.





Gostei bastante.
Sofia Santos
Lorena SP
Sempre publicando coisas belas a Raquel Naveira. Muito bom.
Lourdes de Pimenta
Campinas SP
Magistral!
Sandro de Paula
Campo Grande MS