Crônica - Pequenos flashes de luz dos meus olhos, por André Alvez
- Alex Fraga

- há 10 horas
- 6 min de leitura

Estreia no Blog do Alex Fraga aos sábados, André Alvez é escritor, roteirista e diretor de cinema. Campo-grandense da gema, nascido há quatro quadras acima do Portão de Ferro no Bairro Amambaí. Formado em Publicidade e Propaganda, pós-graduado em Literatura Brasileira, é autor dos livros "A bruxa da Sapolândia, Flores Azuis não Vão para o Céu, O olho esquerdo, Todo Bicho Alado Sente Medo do Vento, entre outros.
Pequenos flashes de luz dos meus olhos
Tudo que é divino nem sempre é comédia. Às vezes é só poesia.
Ultimamente ando perdendo a mão para escrever crônicas contendo bom humor, dessas coisas da vida que uma narrativa leve e agradável pede.
Perdi-me entre a vontade de escrever e a de ler algum autor que gosto.
Acabo inevitavelmente misturando crônica com conto e ainda meto alguma poesia no meio de tudo.
A luz dos meus olhos diminuíram num instante entre um sono profundo e um despertar desesperado, tateando o ar, tentando dissipar a nuvem inexistente.
Muitos já me ouviram falar que não gosto muito de poesia, mas alguém duvida que a poesia pode salvar? Digo isso por causa de Borges, que dizia que a poesia o salvou. Também por causa dele, andei rascunhando algumas frases de efeito, mas agora quase de nada me lembro, apenas fragmentos, desses gritos presos na garganta, que o momento ardente lá fora nos faz declamar, algo assim: a esperança sempre nasce na primavera. Ou então, uma frase mais forte: a morte é o fio da navalha se esgueirando entre a escuridão das linhas do delicado novelo.
O que isso quer dizer?
Só quem escreve pode saber, às vezes nem mesmo o autor sabe. No meu caso, a frase remete mesmo ao medo da morte. Ou pior, a terrível ameaça da cegueira.
Deixemos Borges quieto por instantes e a poesia apenas se esgueirando entre o fio do novelo.
Tenho pensado muito em Deus, embora ainda pairem as tantas dúvidas de sempre. Será um castigo divino a vista falhar? Será Deus capaz de tamanha crueldade?
E se o vento for Deus e às vezes se torna gelado para me cobrar tantas dúvidas?
“Estou aqui, rapaz, é só me sentir.’
Meu rosto arde de vergonha.
Uma barata no canto do assoalho não sabe que eu existo, mas sequer, inseto que é, se presta ao trabalho de duvidar da minha existência.
Se Deus é o vento, eu posso ser o chinelo, tome cuidado dona barata, se duvidar da minha existência, posso... Ah, pobre inseto que não sabe absolutamente de nada.
Sem imagens é impossível sonhar acordado, logo vejo o instante presente.
Na mesa do bar, há um sopro e surge a luz na caneca de chope, brilhando e desenhando no ar um rosto sorridente. Antes era feito da fumaça do cigarro, agora é brilho e quase fala. O cotovelo roça a ponta áspera da mesa. Um gole seco e a imagem some, mas os detalhes do rosto prosseguem no meu pensamento: é um jovem, tem a barba comprida, óculos dos aros redondos e usa coque.
É uma figura diferente.
Gente diferente sempre me cativou.
Se Deus existe, como será a sua divinal aparência? Talvez use barba longa, cabelo longo amarrado em coque, óculos redondo e seja bem jovem.
O vento gelado me chama, a caneta rola na mesa, na cabeça a ardência do começo de uma história faz coçar alguns dos meus dedos.
O teclado pede, respiro fundo e escrevo o primeiro nome que me vem à mente: Fabiano tem a mesma aparência do brilho
escapado da caneca de chope. Será um médico ateu e daqui a muitos anos o chamarei no meu leito de morte pedindo remédios, rezas e socorro. “Eu não sei rezar”, ele me dirá numa sinceridade de personagem dos meus contos. Responderei numa comovente sinceridade, depois de me esforçar para me erguer da cama, rosto franzido até atingir os seus ombros: pois então aprenda a rezar com o vento. Depois desabarei na maciez dos dois travesseiros que me acompanham desde jovem.
De onde tirei isso?
Honoré de Balzac, no leito de morte, chamou por um de seus personagens, o médico Horace Bianchon: "só ele pode me salvar", disse aos pés dos ouvidos da condessa polonesa.
E o que isso tem a ver comigo? Quase nada, mas sabe, o resultado daquele exame de sangue ainda me assusta e a visão turva me aterroriza.
Preciso voltar a ler a comédia humana, parei antes da metade.
Lá fora ouço gritos, a esperança venceu o ódio?
Os pássaros de antes me visitam, eles cantam e então me dou conta que preciso terminar de escrever um texto falando de Borges.
Um conto, um canto, uma visão.
Os hotéis de Buenos Aires tinham as paredes geladas. Talvez Deus tenha assoprado muito, até quase congelar o concreto naquela tarde fria de começo de primavera. Aos 34 anos, Borges tentou se matar. Comprou um revólver, se hospedou no hotel dos prazeres, vestiu terno e luvas, deitou-se na cama e começou a escrever o que seria seu último verso. Que nome darei, pensou o poeta portenho entre uma piscadela nervosa e outra. Levantou-se num repente, acendeu um cigarro e escreveu com letra trêmula no papel roto o nome que imaginou
para o poema: Decepcion. Era sobre o fim, a navalha brilhante descendo sobre o novelo, decepando-o de forma bruta e o resto era a escuridão. Não vejo mais a estrada – escreveu Borges, os olhos ardendo de fumaça de cigarro. Tão abrupto quanto a navalha, parou, não conseguiu encontrar uma rima final e acabou dormindo. No dia seguinte, já não desejava morrer, queria terminar aquele verso. Tentou diversas vezes, mas sempre dormia sem encontrar a maldita rima. Só concluiu depois dos oitenta anos, já cego, sussurrando no ouvido de Maria Kodoma: no hay mejor rima para la esperanza que el amor.
Esse texto é um conto meu, antes que me perguntem, feito numa tarde chuvosa de uma Campo Grande entregue às enxurradas. É que o fantasma de Borges me espreita, volta e meia aparece nos meus dedos diante dos teclados.
A imagem na caneca é quase tão real quanto as borboletas no jardim.
Sem sentido é não sentir, então eu penso.
O meu personagem não se chamará Fabiano, porque não terá o destino de quase todos os Fabianos, será feliz, terá vida longa, amará diversas mulheres até encontrar a que o destino lhe reservou antes que a morte lhe apanhasse desprevenido. Preciso de um nome novo para o personagem, algo atual. Eros nasceu do caos. É um bom nome. Como Eros pode representar o novo se é personagem da mitologia grega?
Dane-se, não preciso ficar explicando o que eu mesmo não consigo decifrar.
Um novo brilho na caneca e meu personagem contém quase a mesma aparência, só muda alguns detalhes, agora percebo que o coque é mais longo, amarrado com elástico de aprisionar maços de dinheiro. Num repente, vejo um enorme novelo ganhando forma atrás do meu personagem. A luz da lâmina atravessa a primeira frase e ele murmura: venha até mim ó lua imensa, me atravesse, antes que a vida passe, ligeira como brilho da caneca de um chope, o mesmo brilho que não me deixa sossegar, desde aquele dia quase tão frio quanto um distante começo de primavera em Buenos Aires.
A lua cheia aparece lá fora e sinto sono. Ultimamente tenho tido a nítida impressão que a lua está maior que antes e depressa se precipita por entre os vãos da janela do meu quarto.
Outro brilho na caneca, vejo Balzac abraçando Borges. Eles riem da falta de jeito de Eros tentando me explicar que não há nada tão grave no meu exame de sangue: “é o de sempre – ele me diz – precisa fazer exercícios físicos e diminuir o açúcar”.
Mas nada diz sobre a pequena luz brilhosa escapando dos meus olhos nesse exato instante. Ora, só preciso me acostumar com a intensidade do brilho.
Um suspiro profundo, a vida adentrando o meu peito, devolvo o olhar e também sorrio para Borges, Balzac e Eros, e ambos acenamos para a lua que se afasta.
No mais é prestar atenção nas curvas da vida, como se fosse uma estrada e talvez a fumaça seja um sinal que o asfalto está ardendo e a brasa acesa ainda é forte. Talvez consiga enxergar, por entre as flores, aquelas mesmas borboletas pousando demais, que tão divinamente cantou o poeta Belchior.
André Alvez





Comentários