Crônica - Atravessa o rio sem ponte, por Carlos Magno Amarilha
- Alex Fraga

- há 1 dia
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Sexta-feira no Blog do Alex Fraga é dia de crônica com o poeta e escritor de Douraods (MS), Carlos Magno Amarilha, com "Atravessar o rio sem ponte".
ATRAVESSAR O RIO SEM PONTE.
O Renato Soldado, meu amigo de São Paulo, de longa data, me ligou e disse: vou passar uns dias em sua cidade e cismou que queria pescar no Rio Dourados. Eu, querendo mostrar serviço, sugeri o Rio Coxim, o Rio Taquari, Rio Apa, rios de fama, sabe? Pra não passar vergonha com peixe miúdo. Mas o Soldado veio com a tralha toda, não teve jeito. Peguei ele no aeroporto de Campo Grande e, no embalo da fissura dele, já fui direto pra ponte do Rio Dourados, ali entre Caarapó. Nessa época, década de 1970, não tinha asfalto, era estrada de chão e a ponte era de madeira. Chegamos, montamos as varas e, de repente, desabou o céu. Um toró daqueles de lavar a alma e alagar tudo. A gente não conseguia voltar pro carro, que tava pertinho do asfalto. Em pouco tempo, a água começou a subir, engolindo a ponte. Bateu aquele desespero, sabe? Eu e o Soldado corremos que nem loucos, cada um por si, atrás de um pedaço de terra firme. No meio do corre-corre, avistamos uns carros parados uns cinco quilômetros adiante. Chegamos cambaleando na estrada, encharcados e tensos. Meu carro, coitado, virou barco e foi levado pela correnteza. Até aí, perrengue superado, certo! Que nada? Mas aí que a coisa pegou de verdade. Olhei pra um carro e vi uma menininha, uns dez anos, chorando feito um bicho acuado. Fiquei sabendo da história: ela precisava levar uns remédios, que estavam num pacote com ela, para a sua avó que morava em Caarapó. Era questão de vida ou morte, a menina disse. Peguei o endereço e os remédios da Laura Xuequer, esse era o nome da menininha, e prometi que ia entregar para a sua avó Dona Viviane. Para minha surpresa, o endereço era próximo da casa de um amigo meu, de longa data, que eu sempre ficava lá, quando visitava Caarapó. Principalmente na festa da Erva Mate. Não pensei duas vezes. A chuva não dava trégua, mas a urgência era maior. Cheguei perto da água barrenta do rio, amarrei os remédios na cabeça com a minha camiseta e me joguei na correnteza. Uns três quilômetros acima da ponte submersa, só se via água e mais água. O rio tava bravo, a correnteza puxava com força. No meio da travessia, um redemoinho me pegou de jeito e me jogou uns cem metros abaixo da barranca do rio. Mas a gente aprende desde cedo a lidar com rio, dessa me safei e continuei nadando, lembrando dos ensinamentos do meu avô e do meu pai: em dia de chuva, nada contra a correnteza, respira fundo e não para. Levei uma corda também, pensando em alguma emergência, e depois de muito esforço e traquejo, consegui chegar na outra margem. Comecei a correr naquela chuva, encharcado e exausto. De repente, vi uma cena bizarra: um cavalo em cima de uma árvore, enroscado nos galhos. Fui lá, com a paciência de Jó, usei minhas cordas e consegui soltar o bicho do perigo. Montamos no cavalo, a pelo nu mesmo, e fomos cavalgando na chuva até Caarapó em uma rapidez, o cavalo era campeão de corridas de um fazendeiro famoso na região. Entreguei os remédios pra dona Viviane, a avó da Laura, e deu tudo certo. Fiquei uns três dias na casa do meu amigo, esperando a chuva passar e a ponte reaparecer. Quando finalmente deu pra atravessar, a Laura veio me agradecer com um abraço apertado e disse que eu podia voltar pra casa. Meu carro foi encontrado uns dez dias depois, todo
bichado. Mas, sinceramente, isso não importava. O que valeu mesmo foi ter conseguido levar o remédio para avó da menina, salvar o cavalo e ver a gratidão nos olhos do meu amigo de São Paulo, da menina, da avó, do fazendeiro do meu editor que beliscou a história. Uma pescaria que virou aventura e, no fim das contas, fez a diferença na vida de alguém. 'São as coisas da vida', já dizia meu pai, quando alguns fatos ocorridos em nosso cotidiano de perdas materiais. Para mim, sinceramente, não tem valor acima de uma vida, tanto que logo consegui lançar um novo livro e que muitos curiosos compraram a nova edição das crônicas do dia e consegui um mês depois um carro zerado.
Carlos Magno Mieres Amarilha.
Atravessar o Rio Sem Ponte. Literatura Pura. Prelo, 2025.





❤️❤️❤️❤️❤️❤️❤️❤️❤️❤️
Magnífico! Fhodão!
Meu! Já li, escutei, muitas histórias de pescador, mas essa, foi sensacional, que pescaria! Que final,!
Silvano Arguelho
Dourados - MS
A crônica "Atravessar o rio sem ponte", de Carlos Magno Amarilha, publicada nesta sexta-feira no Blog do Alex Fraga, é um daqueles textos que te agarram pelo colarinho na primeira linha e só te soltam - emocionado e reflexivo - no ponto final.
O que inicia como um "causo" de pescaria e perrengue entre amigos na Dourados dos anos 70, rapidamente se transforma em uma narrativa visceral sobre coragem e a mais pura solidariedade humana.
Carlos Amarilha domina a arte de contar histórias com uma naturalidade impressionante. Ele nos transporta para a beira do rio cheio, nos faz sentir o medo da correnteza e, acima de tudo, nos faz entender o impulso que leva um homem a arriscar a própria…
É uma leitura obrigatória que lava a alma, tal qual a chuva descrita no texto.
Rita de Cássia