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Conto - Raspa língua, capim gordura e língua de vaca, por João Francisco Santos da Silva

  • Foto do escritor: Alex Fraga
    Alex Fraga
  • há 1 dia
  • 4 min de leitura
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Sábado no Blog do Alex Fraga é dia de conto com o médico clínico geral, acupunturista e escritor de Campo Grande (MS), João Francisco Santos da Silva, com Raspa língua, capim gordura e língua de vaca.


Raspa língua, capim gordura e língua de vaca


Bons tempos aqueles em que a gente acordava sem preguiça. Ansiosos por começar mais um dia, e seguindo a lógica dos anteriores, seria cheio de coisas gostosas para fazer. Naquela época entravamos num universo paralelo. Transpúnhamos um portal de localização imprecisa e por ele percorríamos um caminho inteiramente desconhecido, cruzando matas e ribeirões. Não sou aficionado por plantas, muito menos costumo lembrar de seus nomes, mas na paisagem de minha infância há três capins que me são inesquecíveis.

O raspa língua é uma espécie de capim cumprido e fino, é chamado assim porque corta como navalha. Nos morros que eu subia e descia nas férias de meio e de final de ano havia muito raspa língua. Parece que ele cresce em áreas de mata atlântica degradada. Nas nossas expedições exploradoras pelos arredores de casa, muitas e muitas vezes caíamos num emaranhado de raspa língua e voltávamos ao final do dia com o corpo todo ardendo dos tantos cortes feitos pelo capim afiado. Ficávamos uns dias de molho nos recuperando das lesões, depois esquecíamos e voltávamos a nos embrenhar nos matos das redondezas. Naquela época boa parte da mata nativa ainda estava preservada. Sensação única a de tomar banho em um ribeirão, subir em árvores e ouvir o ruído indescritível da mata. Como nem tudo é perfeito, vez por outra levávamos um susto com uma cobra ou pequeno lagarto passando perto da gente.

Às vezes sou remetido para dentro dessas memórias por uma flagrância. Quem já sentiu o cheiro de capim gordura sabe que ele tem personalidade forte. Já o encontrei em tantos lugares ao longo de minha vida, e mesmo na cidade grande, vez por outra ainda sinto o cheiro desse capim. Não sei porque tem esse nome, mas comparado com o raspa língua, o capim gordura é bonzinho, não machuca e ainda tem um aroma tão especial. Para mim ele é o marcador de uma experiência próxima, mas diferente daquela do raspa língua. O gordura só dava em um morro e desde o início de sua subida minhas narinas iam sendo inundadas pelo

seu cheiro. Entre as tantas coisas bacanas que fazia por lá, eu gostava de descer a ribanceira do morro escorregando, montado num galho de coqueiro que virava uma espécie de trenó e a barranca o trilho de meu tobogã.

Como nem tudo são flores, guardo em minha memória um espaço um pouquinho mais desarrumado para o capim língua de vaca. Essa planta acho que devia ser muito apreciada pelos coelhos. E aí vem o meu ressentimento. Fora das férias, voltávamos para a nossa casa e para rotina. Outros tempos, rotinas diferentes, mas rotina não combina com criança. Íamos à escola, brincávamos e tínhamos que fazer algumas tarefas que nossos pais nos mandavam fazer, como ir todos os dias na padaria pegar pão para o café da tarde, trocar a água, colocar alpiste e limpar a gaiola de uma canária branca, que meu pai insistia em dizer que era minha e eu o responsável por tratá-la. Também era obrigado a buscar o maldito língua de vaca para dar aos coelhos que criávamos em nossa casa. Tínhamos vários coelhos, mas nunca soube muito bem o que acontecia com eles. Acho que só fui experimentar um coelho frito a passarinho muitos anos depois quando estava na faculdade. O fato é que eu e meus irmãos saíamos com uma faquinha para cortar língua de vaca nos campos pertos de casa. Naquele tempo, no bairro em que morávamos ainda havia muitos terrenos vazios, com matagal ou com campinho de futebol. Hoje não existem mais terrenos vazios, eles devem ter ido parar em algum portal transdimensional localizado no hall de entrada de um dos grandes prédios que ocuparam quase todo meu antigo bairro da infância.

Por que escrevi tudo isso? Porque hoje acordei com muita preguiça, sem vontade de enfrentar a rotina aborrecida de adulto. E aí lembrei de quando acordava ansioso para me divertir e começar logo o dia agradável que teria pela frente. Talvez o mais próximo do que sinto nessa manhã seja o que me causava o língua de vaca, tarefa chata, que não queremos, mas temos que fazer. Bem que hoje poderia ser dia de raspa língua que me remete as coisas boas e desejadas, mesmo sabendo que depois teriam suas consequências dolorosas. E apesar dos cortes, as experiências

valeram a pena e não me arrependo da maioria delas. Nessa manhã, o capim gordura seria um bálsamo. Mesmo não o vendo, sentir o seu aroma me reconectaria a experiências sensoriais que vão além da mera recordação de fatos felizes vividos.

Nesse exato momento, quase terminando de escrever este texto, que não é sobre ervas medicinais, mas sim sobre ervas existenciais, pensei que a partir de amanhã, todos os dias pela manhã, antes de sair da cama, vou entoar esse mantra: que meu dia tenha pouco língua de vaca, que o raspa língua esteja cego e que eu possa respirar uma dose generosa de capim gordura.

 
 
 

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