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Conto - O sorriso da orquídea, por André Alvez

  • Foto do escritor: Alex Fraga
    Alex Fraga
  • há 6 horas
  • 5 min de leitura
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Sábado no Blog do Alex Fraga é dia de crônica com André Alvez  (Campo Grande MS), escritor, roteirista e diretor de cinema, com "O sorriso da orquídea".


O sorriso da orquídea


Talvez Eleanor tenha reparado primeiro, mas nada disse, apenas

olhou e guardou na mente: as flores do jardim estavam diferentes; o

verde caído, o brilho fosco nas margaridas, a rosa vermelha

transformada em cinza e o jasmim com as pétalas abertas num

branco sem vida.

Carlos dizia enxergar o sorriso das flores. Num passeio, entrou na

mata à procura de tesouros e de lá retornou trazendo um pedaço de

tronco de árvore com um filete de rama verde escapando entre as

frestas da madeira.

Ela sorriu surpresa, ele tratou de pôr fim ao espanto: “é uma

orquídea, desse tronco logo nascerá uma das mais belas flores do

mundo”, disse enquanto repousava o tronco da árvore no seu colo.

Naquele instante, dos olhos de Carlos escapou um brilho intenso

transformado numa lágrima incontida de canto, enxugada às pressas

nas mãos trêmulas de emoção.

Eleanor não sabia, sequer desconfiou: o brilho e a lágrima eram

sinais de adeus.

Para matar o luto, coloriu o quintal da casa com flores de diversos

tipos.

Do tronco que guardava a orquídea – cuidadosamente preso a um

arame na parede da varanda – brotou uma flor estranha, de três

pétalas marrons e no centro a figura de um macaco. Olhando

atentamente, a orquídea parecia sorrir. Era espantosa e ao mesmo

tempo cativante. Lembrou-se de um livro antigo que falava sobre o

sorriso das flores após a tempestade. As lentes dos óculos estão

novamente embaçadas – pensou – mas após esfregá-las com todo

cuidado, e lançar o rosto junto à planta, o macaco permanecia lá,

mostrando o seu indefectível sorriso.

Antes de enlouquecer – porque começou a falar com a orquídea

como se fosse Carlos – resolveu mudar a planta de lugar, num galho

do pé de magnólia, pouco distante da janela do quarto de dormir.

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Entre o cochilo e o sono profundo, no meio das folhas da magnólia,

o macaco parecia lhe sorrir.

No apagar das luzes, restava o brilho fraco do vidro da janela

rondando o sono que não vinha. Um último olhar de soslaio e lá fora

o macaco prosseguia sorrindo, apontado para ela suas pétalas

marrons, como quem pede um abraço.

A luz do sol invadindo o quarto, outro dia, o sono pesado que a fez

desabar pelos lençóis da cama pouco antes. A garganta, seca pela

estiagem, ardeu no gole do copo d’água que deixou pela metade,

atiçada pelo bater de asas dos Beija-flores na varanda da vizinha.

Porque razão os beija-flores de repente só se vestiam de cinza?

As outras pessoas cruzaram a praça num ritmo acelerado, sem olhar

para os lados. Um tanto acabrunhada, Eleanor ergueu o rosto para o

alto, fumando o vento enquanto tentava prender a presilha em seus

cabelos rebeldes. Do vento sentiu o cheiro das plantas, o mesmo de

sempre, mas as cores das flores estavam diferentes. O céu cinza

sem nuvens refletia a estiagem – talvez seja isso, imaginou – .

Apanhou uma flor do canteiro – ainda ontem era uma reluzente

petúnia azul, suspirou – a mesma cor que sempre imaginou o mar,

mas agora estava cinza feito o céu.

Acelerou os passos, mordeu os lábios para não dizer nada, alguém

haveria de perceber e também exclamar, afinal, flores não mudam de

cor, são sempre as mesmas. No ponto de ônibus, as pessoas, como

se combinado, trajavam roupas opacas, os bancos do ônibus

também estavam diferentes, acinzentados, não existia mais o

amarelo, nem mesmo a camisa do motorista, antes de um azul claro

vistoso, agora transformada numa tristeza bege. Um olhar em volta,

novo assombro, os ipês só deram flores marrons e algumas cinzas.

Que estranho, ninguém percebeu! Limpou os óculos com tecido de

lã num leve passar dos dedos, ajeitou o corpo rapidamente e retirou

da bolsa um livro da George Sand, costume antigo, ler no ônibus, em

pé, com uma das mãos seguras no ferro de proteção e a outra

equilibrando o livro aberto. O mundo em volta se apagava e o som

que ouvia era do vento assoprando um vasto campo florido. Eleanor

era uma jovem nascida com tempo para tudo, até mesmo para

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observar detalhes, pequenas mudanças, mas não reparou que a

literatura francesa estava em desuso e somente ela naquele ônibus

lotado sabia por que George Sand usava calça comprida e fumava

charutos em público. Um sacolejo no asfalto ruim, a volta à realidade

momentânea, o olhar rápido em volta e a certeza: ninguém por perto

conhecia George Sand.

As duas árvores que ornavam a frente da empresa a receberem num

abraço de folhas cinzentas. Na entrada, o quadro de Van Gogh se

mostrou apagado, repleto de girassóis mortos. Segurou firme o

cartão de ponto, antes amarelo e agora bege, feito um pano de chão.

Ao passar pelo espelho, imaginou ter se enganado com o vestido,

não era daquela cor, embora muito parecido. O rapaz musculoso da

copiadora passou por ela esparramando pelo ar um perfume azedo

que embaçou de vez as lentes dos seus óculos. Os olhos negros de

agora, ontem eram castanhos – pensou – e teve pressa, ajeitou o

corpo no vestido e arrumou a presilha na cabeça, a velha tendência

a fugir de situações embaraçosas. Seria uma má sina ter os cabelos

ruivos e os olhos azuis se os cabelos rebeldes viviam brigando com

a presilha e os olhos bonitos se escondiam detrás das lentes dos

óculos.

O dia passou depressa. No retorno, as luzes da cidade estavam

opacas e um vento repentino trazia o cheiro de chuva. Um breve

sorriso abraçando a imagem no pensamento: George Sand

enxergava o sorriso das flores num quadro de Van Gogh enquanto

Chopin tocava piano após a tempestade.

Novamente em casa, se deparou com as paredes tomadas numa

inesperada cor de avelã. Demorou mais que o habitual para encaixar

a chave na fechadura, assombrada pelas flores do jardim, envoltas

numa cor de pólvora. Tateou a parede até encontrar a tomada da luz,

mas a escuridão permaneceu até limpar os óculos. A quietude

quebrada por pequenos ruídos, a gaveta se fechando levemente na

cozinha, a porta da geladeira se abrindo. A fumaça do cigarro

desenhou um círculo marrom e ela sentiu um medo Kafkiano de se

transformar numa barata. Ao menos as baratas podem voar e

desconhecem as cores das flores – pensou em meio a um sorriso

tossido.

A antiga vontade de conhecer o mar havia deixada num canto. Sem

Carlos, o mar não tinha razão; era imenso e azul, às vezes verde,

trazia ondas enormes que desabavam na praia, mas nada sabia

sobre flores sorrindo.

No fim daquela noite caiu uma chuva fininha, que foi aumentando,

até se tornar temporal e Eleanor não enxergou mais nada, apenas a

janela baça segurando os pingos fortes que lhe batiam num

tamborilar nervoso. No clarão do relâmpago, lá fora, a flor com cara

de macaco sorria para ela.

Conforme a chuva aumentava e envolvia a janela no seu manto de

águas incessantes, da magnólia a orquídea ganhava vida, vindo

acelerada até a parede do quarto, abraçando completamente o vidro

da janela.

Já não tinha a cara de macaco, era um rosto de gente, o rosto de

Carlos.

Eleanor enxugou a lágrima fina no canto dos olhos, sorriu

timidamente, virou-se para o outro lado antes que a vista embaçasse

de vez e desabou num sono alentador.

Sonhou sonhos bons, porque nos sonhos não existem lágrimas, não

é preciso usar óculos.


André Alvez

 
 
 

1 comentário

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Ana Sol
há 2 horas
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O luto mais bem descrito que já tive conhecimento .

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