Conto - Cotidiano urbano, por João Francisco Santos da Silva
- Alex Fraga

- há 7 horas
- 3 min de leitura

Sábado no Blog do Alex Fraga é dia de Conto com o médico clínico geral, acupunturista e escritor de Campo Grande (MS), João Francisco Santos da Silva, com Cotidiano urbano.
Cotidiano urbano
Abriu o portão resmungando. Ignorou a pessoa parada em pé, com a mão enfiada na campainha. Primeiro olhou para o céu e para a poluição visual sobre sua cabeça. Um emaranhado de fios e cabos esticados de poste a poste, alguns deles passando da rua para o telhado de casa. Da boca torta e flácida saiu outro resmungo. Difícil saber se era de alivio, raiva ou por insegurança.
Provocador, o desconhecido de sempre lhe intimou:
— Que tem pra hoje tio?
— Aqui toda semana fica sem luz.
— É... Fio de cobre dá uma grana boa.
— Você gosta dessa rua?
— Por que?
— Porque você está sempre aqui na frente de casa!
— Que foi isso com o tio? A boca tá toda torta.
— Derrame!
— Diz que irritação demais dá nisso. E o que o tio tem a ver com o que eu faço aqui?
— Vou pegar um pão com mortadela lá dentro.
— Traz uma coca também tio.
O velho voltou para dentro de casa arrastando a perna direita semiparalisada. Pegou uma faca afiada na gaveta da pia da cozinha. Desviou um pensamento que lhe veio à mente. Cortou duas fatias grossas de mortadela, colocou-as no pão com um pouco de tempero. Por sorte, na véspera ele havia pedido para o filho trazer do supermercado a mortadela e o tempero.
Entregou o pão com mortadela e um copo de coca. O rapaz enfiou tudo na boca de uma só vez, mastigou e depois engoliu com uns goles do refrigerante. Por fim soltou um arroto alto e desagradável. O velho ficou com a face rubra e as mãos trêmulas.
—O que o tio tá me olhando?
— Nada. Gostou?
—Me dá mais um pra eu comer depois.
O velho retornou à cozinha resmungando. Novamente pegou a faca afiada e ameaçou dar alguns passos em direção ao portão de casa. Mas desistiu da ideia e preparou
outro pão com duas fatias de mortadela e tempero. Desta vez, também levou a garrafa com o que restava de coca cola.
— Leve a garrafa de coca. A mortadela é salgada e mais tarde vai dar sede.
O cara era um imprestável. Um dia acabaria mal. O corpo inerte numa calçada fedida de mijo, com um pedaço de pão com mortadela e a garrafa de coca cola vazia, caídos ao lado.
— Morreu quase agora. Ainda tem essa espuma branca escorrendo pela boca. Devia ser epilético. Aspirou coca com mortadela. Até pra morrer são chinfrins. Não vale nem uma necropsia.
— Menos um ladrãozinho de fio de luz. A cidade vai ficar mais iluminada sem ele — riram os dois policiais que examinavam o corpo enquanto esperavam o rabecão do IML.
Dias depois.
— Pai, vou ao supermercado. Quer que eu compre mais tempero? Só que lá não tem fubarim. Essa marca antiga nem existe mais. Mas aquele que lhe trouxe da outra vez faz o mesmo efeito. No envelope diz que o rato come e vai morrer longe. O corpo até seca. Só cuidado com o cachorro. As ratazanas com sede vêm beber na vasilha e pode contaminar a água. — E o senhor vai querer mais mortadela?
— Não. Não quero mais nada. Já matei à vontade.
No alto dos postes os fios continuavam no mesmo lugar. O cachorro dormia despreocupado em frente à casa. O velho arrastava a perna direita e pela boca, cada vez mais retorcida, resmungava qualquer coisa, com o mesmo mal humor de sempre.





Comentários