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Conto - A mulher que esperava, por João Francisco Santos da Silva



Sábado no Blog do Alex Fraga é dia de conto com o médico clínico geral, acupunturista e escritor de Campo Grande (MS), João Francisco Santos da Silva, com "A mulher que esperava".


A MULHER QUE ESPERAVA


Vivências passadas são preciosidades frágeis que só sobrevivem guardadas dentro de quem as experimentou. Buscar revisitá-las em sua origem, pode rasurá-las e destruí-las. As vezes, o cenário dos acontecimentos está tão diferente e distante das recordações que se tornam estranhos desconhecidos. A rua, antes calçada com paralépideos irregulares, foi recoberta por asfalto. Em pleno centro histórico, a rua asfaltada destoava dos casarões antigos. Até os sobrados, antes tão imponentes, agora pareciam construções velhas e decadentes. Mesmo passados tantos anos e sem a referência da rua de pedras e dos imponentes casarões, ela encontrou o mercado do cais do porto e a praça. Tudo muito modificado, atualizado nos últimos sessenta anos, desde seu último passeio à praça.

Ela sentou num banco da praça como costumava fazer nos velhos tempos. Respirou profunda e lentamente duas ou três vezes, e desviou sua atenção para o mar. Até o oceano muda com o tempo. Mas, será que estava no lugar certo? Não conseguia sentir as mesmas coisas que tantas vezes havia sentido ali naquela praça. Então, a mulher olhou ao redor buscando por auxílio. Num outro banco da praça, quatro adolescentes riam e conversavam animadamente.

— Bom dia meninos. Vocês podem me disser como chama essa praça?

— É a praça da noiva do pirata. Falou um deles rindo.

—Não! Não é nada disso! Aqui é a praça da amante do contrabandista. Falou um outro, também rindo.

Como não paravam de rir, a senhora esperou pacientemente por algum tempo, até que um deles conseguiu falar direito e lhe dar alguma resposta.

— A senhora não deve ser daqui, senão entenderia a nossa zoação. Eu não sei o nome verdadeiro dessa praça. Mas, há a história de uma mulher desconhecida, que diariamente chegava na banca do mercado e comprava algumas poucas bananas. Depois vinha aqui na praça e ficava sentada num dos bancos por horas e horas olhando para o mar. Uns diziam que ela possuía um olhar perdido, outros que mantinha o olhar fixo e atento a paisagem. Em todas as versões a mulher esperava por alguém. Para os românticos, seria uma pessoa amada que chegaria pelo mar, quem sabe um pirata? Para os mais ambiciosos, ela esperava pelo amante contrabandista que lhe traria uma carga de “produtos suspeitos”. E ainda, há quem diga que a mulher que esperava, havia perdido o juízo depois que seu noivo desapareceu numa tempestade em alto mar. Desde então, ela permanecia numa espera interminável pelo noivo. Enquanto esperava comia banana e conversava com as pedras da rua.

— Menino, que história interessante! Obrigada pelas informações. Então estou na praça certa. Essa última fala da senhora idosa deixou os adolescentes desconcertados e curiosos.

A mulher voltou para o banco, ainda deglutindo a história contada pelos meninos. Mais que surpresa, ela ficou com a estranha sensação de ter perdido parte importante de suas memórias. Mesmo assim, se deu o direito de recordar a sua própria versão da história da mulher que esperava.

No início, ela estimava a distância de sua casa ao mercado do cais do porto pelos quarteirões caminhados. Percorria dois longos quarteirões e chegava ao mercado. Depois, com a repetição do trajeto e para se distrair das preocupações, passou a contar os paralelepípedos da rua. Rua estreita, meio que estrangulada pelos antigos casarões que lhe margeavam. O calçamento todo irregular, com pedras disformes umas das outras, ora mais altas, ora rebaixadas, algumas fixas, outras soltas, se mostrou incontável. Durante o tempo em que durou a azia, nunca conseguiu saber em quantas pedras pisava na sua caminhada diária ao mercado. A ausência de lógica na irregularidade do calçamento lhe incomodava. As vezes dava 10 passos sem problemas e quando relaxava pisava em falso numa pedra torta. O risco de cair, e machucar-se novamente, lhe angustiava. Pouco adiantava se as duas primeiras estavam firmes e apoiadas, a próxima poderia lhe derrubar.

Queimação leve, mas que não queria deixá-la. Das outras vezes foi assim. Mas, não bem assim. Cada vez foi diferente e parecida. Isso lhe trazia uma angústia. O que seria igual e o que poderia ser diferente? Depois que já se tem experiência, a preocupação e o medo podem diminuir ou aumentar. Tudo depende de como foram as experiências anteriores. Azia é ruim, incomoda. Mas, se ficasse só nisso, estaria tranquila.

A azia constante lhe motivou as idas frequentes ao mercado. Mesmo sabendo que como vinha, ia embora, seguiu a sabedoria alheia e começou a comer banana. Mas, precisava ser banana ouro fresca, recém colhida no pé. A vida pode ser algo fora do controle. Ela não escolheu mudar-se para aquela cidade portuária. Mesmo não sendo intencional, agora percebia algumas vantagens em morar ali. Das outras vezes que sofreu com azia, vivia distante do mar, se ainda estivesse lá não conseguiria bananas frescas. Cidade de serra, fria, sempre com neblina, as bananas são trazidas verdes do litoral para amadurecerem nas prateleiras dos mercados. Quem sabe, se da última vez tivesse comido banana fresca a experiência fora diferente.

Coisas que exigem cuidado, azia e rua com pedras soltas. Mas, porque tanta ansiedade? Já devia estar tarimbada. Ao contrário, parece que as vivências passadas lhe geravam mais temores que a inexperiência da primeira vez. Experiências parecidas, e por

isso mesmo diferentes. Ficar novamente tanto tempo sem fumar. Bom motivo para ansiedade, mas a nicotina não bastaria para afastar o temor e a insegurança que lhe acompanhavam nas caminhadas ao mercado do cais do porto.

Mesmo desconhecendo o quanto percorria, com o passar das semanas sentia que chegava cada vez mais cansada ao destino. O calor excessivo piorava tudo. As pernas inchadas lhe pesavam. Ao longo do trajeto fazia pequenas paradas para descansar. Aproveitava a segurança da parada para tirar os olhos do chão e mirar o casario centenário. Sem motivo aparente lembrava da sua cidade natal. Cidade portuária também, mas que não possuía casas tão antigas. Na sua infância e adolescência ia comprar peixe num mercado de cais de porto parecido com o daqui. Mercado parecido, mas diferente, assim como as ruas por onde caminhava na juventude. O calçamento regular e firme lhe permitia andar com segurança e sem preocupação com quedas, como experimentava agora.

Andava os últimos metros e finalmente chegava ao mercado. Já era freguesa da barraca de frutas. O quitandeiro sabia que a senhora queria apenas uma mão de bananas ouro e que precisavam ser frescas. Para não haver dúvidas, ele pegava as bananas de um cacho pendurado no teto da sua banca. Depois as embrulhava num pedaço de jornal e lhe entregava. Nas primeiras vezes, o quitandeiro se ofereceu para entregar o cacho inteiro de bananas. Cidade pequena não custaria levá-lo para casa da freguesa. Além de ficar mais barato, pouparia a caminhada diária no sol quente. Diante das recusas recorrentes ficou por isso mesmo, sem o homem compreender a estranha mania da freguesa sistemática.

Invariavelmente a mulher saía com o embrulho, atravessava a rua e ia sentar-se no banco da praça posicionado de frente para a baia. Havia um pequeno píer com barcos e canoas ancorados. Depois de acomodar-se no banco, ela iniciava o seu ritual. Primeiro respirava lenta e profundamente duas ou três vezes. Descascava a banana e a comia bem devagar. E então, com a respiração cadenciada, mantinha o olhar voltado para a linha do horizonte. Quem lhe observasse de longe, pensaria que a mulher estava esperando por um barco que a qualquer momento aportaria no píer. Se o observador fosse perspicaz, notaria que vez ou outra, seu olhar se desviava mais acima seguindo o voo de alguma gaivota barulhenta.

Difícil saber por quanto tempo ela permanecia sentada naquele banco de praça em atitude de espera. Enquanto esperava, sorvia o cheiro de maresia, o mesmo de sua infância. Cheiro intenso, de vida. Escutava o barulho do mar, som único, sinfonia perfeita. E sentia a leve brisa marítima tocando seu rosto. Lugar privilegiado onde ela conseguia

ampliar os seus sentidos. E há momentos, como aqueles, em que apenas cinco sentidos seriam insuficientes para o que ela necessitava receber e transmitir. Enquanto esperava, tentava transmutar toda energia ali captada em nutrição.

Após longas horas, seus olhos mudavam de direção, indo da linha do horizonte para as canoas ancoradas no píer. Elas flutuavam preguiçosamente, subindo descendo ao sabor da maré calma. A mulher então fechava os olhos e trazia para si a paz e o sossego do balé das canoas. As águas do mar interagiam com as suas próprias, e reverberavam internamente em aconchego e acalanto.

Ela estendia ao máximo sua permanência na praça à beira do cais. Queria reter o balanço das canoas e o cheiro da maresia. Quem sabe levar consigo o barulho do mar. Instintivamente passou a mão no ventre, pelo menos estava sem azia. Não dava para garantir o resultado, mas dessa vez estava bem temperado. Com temperos diferentes, mais frescos e recém incorporados. O caldeirão era parecido com o das outras vezes, porém um pouco mais usado. Prestes a partir, dava uma última olhada para o oceano. Teria que retornar para casa pela mesma rua de pavimento irregular. Cavalo sem rédeas que não podia desmontar e no qual ela cavalgava com medo e incertezas. A sina da espera prosseguiria por mais algum tempo.

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Guest
Sep 03
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Guest
Aug 31
Rated 5 out of 5 stars.

Excelente.

Joana Furnan. Três Corações .MG

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