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Texto Poético - O Ermo dos Gabirus (Final), por Paulo Portuga

  • Foto do escritor: Alex Fraga
    Alex Fraga
  • há 1 hora
  • 3 min de leitura
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Quarta-feira no Blog do Alex Fraga é dia de texto poético com o professor, músico, compositor e poeta, Paulo Portuga com "O Ermo dos Gabirus - Final".


O ERMO DOS GABIRUS - FINAL


O Ermo dos Gabirus é um lugar único. Tem porto pra embarcar e desembarcar, tem redário pra espichar o corpo, tem um fogão de lenha que a gente apelidou de Jorge — ninguém sabe ao certo o porquê, mas deve ser por conta das bocas de fogo que ele cospe, como se fosse um dragão de barro e brasa. Nele, a gente cozinha peixada, galinhada, feijoada, faz tortas, assa carnes, pães, bolos, esfirras e mais uma porção de quitutes que só o fogão de lenha sabe dar sabor. O calor que sai dele aquece a alma, e em volta do Jorge a conversa corre solta: proseamos, contamos histórias, causos e até umas mentirinhas inofensivas — e o que não presta, a água do rio Piri leva embora sem reclamar. Por lá, o tempo é outra entidade. É um mistério com fuso próprio: quando o relógio do mundo marca duas da tarde, no Ermo ainda são oito da manhã. O dia passeia devagar, com o vento soprando e chacoalhando os galhos das árvores, que estendem seus braços pro céu como se pedissem um abraço de nuvem. O Ermo tem também sua língua própria: um dicionário ermânico que só quem frequenta entende. Lá se “sucurisa” depois de encher o bucho, e “estrovenga” é qualquer ferramenta de cabo de madeira e ponta de aço — enxada, pá, picareta, machado — coisas sagradas… e, como diz um dos ermeiros, “trabalho é sagrado, e a gente não mexe com o sagrado”. Tem mais: “olho de banha”, que é o olho gordo do invejoso; o “se tem olho, dá molho”, que serve pros peixes que pescamos e não enjeitamos. E os apelidos? Ah, esses brotam que nem capim depois da chuva. Quase ninguém sai imune: tem Zé Graveto, João Litrão, Neguinho Aguado, Crente Saiuda, Bago Assado (esse caiu sentado na fogueira!), Cu Trancado, Velho do Rio, Paraguaio Desconfiado… e a lista continua, se deixar. E não faltam as entidades. O Burrão e a Saia Branca aparecem quando bem entendem. Só alguns têm o dom de ver ou perceber. Quem vê, não comenta. Quem não vê, respeita. As cantorias são outro espetáculo. Músico é o que mais tem: violas, violões, sanfonas, pandeiros, vozes afinadas e desafinadas — mas todas felizes. Não existe hora certa pra cantar, o canto acontece. Somos em quatro sócios no pedaço: o Coronel do Apa (Seu Ribeiro), o Gabiru Legítimo (Brother), o Pedrão, mestre da caipirinha bem caprichada, e eu — que vos conto essa história. Visitantes e moradores de passagem são gabirus de todo tipo: tem o pé-de-pano (entra e sai sem fazer barulho), o mexilhão (dispensa comentários), o gabiru atrapalhado, o gabiru lombriga (se sair da merda, morre), o gabiru sem cifra (sem dinheiro) e o gabiru desidratado (vítima de um desarranjo daqueles). Mas todos têm algo em comum: gostam dos cartuchos (as brelas, as cervejas) e do bico amarelo, a aguardente curtida com raízes, folhas, cascas e sementes, que alegra o coração dos ermeiros no dia a dia. E os bordões? No Ermo, bordão vira lema: “Ô vida boa!”, que já virou música; “Depois eu te conto”, quando o assunto é reservado; e o clássico “Daqui a pouco eu vou”, resposta certeira para um convite irrecusável. É isso, minha gente: o Ermo tem natureza, tem gente e tem cultura. Espero que um dia você possa conhecer e sentir o que estou dizendo. Te espero por lá. Prazer em conhecer o Ermo dos Gabirus.


Paulo Portuga, 10/11/2025.

 
 
 

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