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Texto/Poesia - Os últimos dias, por Raquel Naveira

  • Foto do escritor: Alex Fraga
    Alex Fraga
  • 5h
  • 3 min de leitura
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Quinta-feira no Blog do Alex Fraga é dia de texto poético com a poeta e escritora de Campo Grande (MS), Raquel Naveira, com "Os últimos dias: .


OS ÚLTIMOS DIAS

Raquel Naveira


Depois de conversarmos sobre a finitude da vida, a velhice, a aproximação inexorável da morte, a amiga me sugeriu ler o livro “Os Últimos Dias da minha Vida”, do escritor, jornalista e educador, Gilberto Dimenstein (1956-2020). Trata-se de um livro de memórias, publicado pouco antes da morte do autor, escrito enquanto ele enfrentava um câncer no pâncreas, com lucidez e serenidade. Um testmento. Um testemunho. Um legado. Revisão de sua trajetória pessoal e profissional. O tom é íntimo, filosófico, de alguém que vive seus últimos dias com dignidade, amor e gratidão, não por tudo que teve, mas por tudo que sentiu. Quanta coragem e poesia em frases como: “A morte não é o fim. É apenas uma mudança de forma.”; “Viver é aprender a morrer todos os dias um pouco- e ainda assim agradecer.”; “Quero morrer leve, sem rancores, sem peso...”; “Meu corpo dói, mas minha alma dança.”. Fantástico! O corpo se apagando, mas uma chama vermelha ardendo ainda mais. Os olhos percebendo a beleza nas rachaduras do dia, transformando cada pensamento em poesia. Que espiritualidade ampla a desse homem otimista, criativo, que teve sempre o propósito de servir os outros.

E agora assisti a um filme sobre os últimos dias de uma escritora, correspondente de guerra, a personagem Martha. É “O Quarto ao Lado” (2024), do cineasta espanhol Pedro Almodóvar. Ingrid (Juliane Moore) e Martha (Tilda Swinton foram amigas na juventude. Trabalharam juntas numa revista. Ingrid também é escritora de auto-ficção. Após anos sem se verem, Martha contraiu uma doença terminal e pede para que Ingrid a acompanhe em seus últimos dias, numa casa linda e florida, em frente ao mar. Que Ingrid aguardasse no quarto ao lado. São muitas as questões colocadas: a lealdade, o balanço do passado, o sofrimento, o cuidado, os limites da ética, o direito à eutanásia para pôr fim a uma dor sem solução. Temática pesada, desafiadora, cheia de dilemas, em meio ao colorido forte dos ambientes e vestimentas.

A expressão “os últimos dias” tem um significado teológico profundo. Ela não se refere apenas ao “fim do mundo”, mas a um período especial da história da salvação. Os últimos dias começaram com a vinda de Cristo. Ou seja, o tempo final já foi inaugurado. Estamos num período de expectativa de plenitude futura. Somos chamados à vigilância, enquanto ao nosso redor há guerras, furacões, crises morais e espirituais, vozes mescladas de falsidade, corações duros e frios. Enquanto a noite avança, a aurora vem chegando.

A esperança grudada em nós. Ela é a virtude dos últimos dias. A areia escoa na ampulheta do tempo, que é breve. O juízo virá. Decidi apostar para ver o que vai acontecer. O meu último dia é cada instante.

Certa vez, escrevi este poema:

–Barqueiro, leva-me até a outra margem,

Meus lábios te suplicam,

Enquanto minhas mãos

Se cobrem de calos e feridas

E remam,

Remam,

Neste rio de enxofre.


–Barqueiro, leva-me até a outra margem,

Minhas costas se curvam de fadiga,

Alcanço pequenas ilhas,

Montes forrados de hera,

Despojos de navios,

Mas quando alcançarei o que não pode

/ ser alcançado?

Quando chegarei ao fim?


–Barqueiro, leva-me até a outra margem,

Como se agitam estas ondas!

Entra no meu barquinho,

Conduze tu mesmo o leme,

Que tudo o que tenho te pertence

E tenho apenas farelos de estrelas,

Grãos de poemas

E nenhuma alegria.


–Barqueiro, leva-me até a outra margem,

Onde fica a outra margem, barqueiro?


O barqueiro evoca Caronte, a figura da mitologia grega que transportava as almas dos mortos pelo rio Estige até o reino dos mortos. Um espírito sombrio, velho, magro, de olhos fundos e manto escuro. Exigia um pagamento para a travessia: uma moeda, o óbolo. Representava o rito funerário, o dever e a neutralidade diante da morte. Caronte não julga, apenas conduz.

Trocaria a barca pela cruz, outro instrumento de passagem, mas, desta vez, creio, seria conduzida através da morte, rumo à margem da vitória.

Há urgência em meu interior. Há verdade. O fim virá. Não será um estouro violento. Apenas, um último suspiro.




O barqueiro

 
 
 

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