Texto/Poesia - Matemática e Literatura, por Raquel Naveira
- Alex Fraga
- há 5 horas
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Quinta-feira no Blog do Alex Fraga é dia de texto/poesia com a escritora e poeta de Campo Grande (MS), Raquel Naveira, com "Matemática e Literatura".
MATEMÁTICA E LITERATURA
Raquel Naveira
Matemática é a ciência que tem por fim determinar o valor das grandezas segundo as relações e propriedades existentes entre as mesmas. Matemática abstrata é a que tem por fim determinar as quantidades desconhecidas pelas relações que ligam às quantidades conhecidas por meio do cálculo. Já a matemática concreta tem por fim conhecer com precisão as relações existentes entre as equações dos fenômenos. As matemáticas aplicadas consideram as grandezas em determinados corpos ou assuntos e as mistas consideram as propriedades da grandeza em certos corpos ou fenômenos particulares, como a Mecânica e a Astronomia e há ainda as matemáticas puras que estudam as propriedades da grandeza em abstrato, como a Geometria e a Álgebra.
Desde os primeiros estudos da matemática elementar, das primeiras noções de números, os algarismos arábicos, apresentei dificuldades como aprendiz. Minha tendência natural ao sonho, aos devaneios, aos voos da imaginação, não me deixava concentrar em algo tão concreto e, ao mesmo tempo, tão baseado em conceitos. Além disso, quando não consegui solucionar contas em que deveria escrever a centena com lápis azul, o decimal em vermelho e a unidade em verde, a professora Margarida logo deu o veredicto: “Tão boa em leitura e português e tão fraca em Matemática!” Interiorizei a mensagem e jamais desenvolvi meu raciocínio matemático. O incrível é que nas séries seguintes memorizava certos mecanismos e até tirava notas razoáveis. Passadas as provas, todos os processos se dissolviam dentro de mim.
Mesmo com essas dificuldades, apaixonei-me por uma antiga coleção de contos árabes de Malba Tahan, onde estava O Homem que Calculava. Malba Tahan era o pseudônimo do professor de Matemática, Júlio César de Mello e Souza. Seus contos espalharam-se por todo o Brasil e por toda a imprensa de língua portuguesa. Foi o primeiro escritor de gênio árabe na América do Sul. Sua obra, iniciada em 1925, com a publicação dos Contos, conquistou vasta popularidade. Céu de Allah, Amor de Beduíno e Lendas do Deserto completaram sua personalidade de prosador oriental.
Júlio César de Mello e Souza nasceu no Rio de Janeiro, no dia 06 de maio de 1895, mais tarde Dia do Matemático, instituído em sua homenagem pela Assembleia Legislativa carioca. Era engenheiro com título científico obtido na Escola Politécnica. Inventou Malba Tahan, uma figura árabe, que tinha no pensamento os desertos, as tamareiras, as tendas estremecendo ao vento, sacudidas pelas tempestades de areia. O Professor Júlio César consagrou-se na vida prática ao estudo e ao ensino das Matemáticas, que constituem uma ciência árabe ou que o árabe tomou como sua. Quantos séculos terão dormido no sangue do personagem/autor Malba Tahan? Por que surgiu para a atividade da inteligência, um mouro que os árabes deixaram na península ibérica? A esse árabe do Brasil estava destinada a realização de um dos maiores empreendimentos das literaturas orientais tentados fora do Oriente. Dotou as letras brasileiras com uma coletânea intitulada Mil Histórias Sem Fim, contos de inspiração oriental, ligados entre si, grande joia formada por mil pérolas miúdas.
E não é que esse beduíno ousado e cheio de fé veio visitar Campo Grande, no sul de Mato Grosso, a convite do Lions Clube e se encontrou comigo? Ele, um velho peregrino
de cabelos brancos e eu, uma princesinha de 13 ou 14 anos, que, desta terra de cerrados e guaviras, já lera e avistara, através de seus contos, os minaretes de Meca.
Foi o senhor Nagib Buainaim, outro árabe, quem nos apresentou: “_Malba Tahan, ela quer ser escritora”. Ele, então, sorrindo, segurou minhas mãos trêmulas e disse:
_Mãos de linhas finas, de muita sensibilidade. Quando Allah quer bem a um dos seus servidores, abre para ele as portas da Inspiração.
Desde essa tarde no Rádio Clube, em que o ouvi falar sobre a arte de contar histórias, esse árabe estranho caminha comigo pela vida... Terei sonhado tudo isso? Tantas caravanas passaram.... Mas sinto ainda na pele aquela benção de Allah.
O Homem que Calculava é um romance das aventuras de um singular calculista persa. Malba Tahan o dedicou à memória dos grandes geômetras cristãos ou agnósticos: Descartes, Pascal, Newton e a todos os que estudam, ensinam ou admiram a prodigiosa ciência das grandezas, das formas, dos números, das medidas, das funções, dos movimentos e das forças.
No romance, narrado em primeira pessoa, um beduíno andando pela estrada de Bagdá, durante uma excursão, encontra um viajante. O viajante pronunciava vagarosamente cifras enormes como “Um milhão, quatrocentos e vinte e três mil, setecentos e quarenta e cinco”. O beduíno perguntou a significação daqueles números e o Homem Que Calculava começou a narrar a história de sua vida: que se chamava Beremiz Samir, que havia sido pastor a serviço de um rico senhor, que contava as ovelhas do rebanho várias vezes durante o dia, adquirindo, pouco a pouco, a habilidade em contar, num relance, o rebanho inteiro. Passou a exercitar-se contando os pássaros em bando, as formigas, as abelhas e os cachos de tâmaras.
O beduíno convida Beramiz a tornar-se seu companheiro de jornada. Certamente, numa capital como Constantinopla ou Bagdá, o Homem que Calculava poderia ser útil ao governo, avaliar os recursos do país, o valor das colheitas, os impostos, as mercadorias, os recursos do Estado. Daí em diante, ligados por aquele encontro casual, passam a ser amigos inseparáveis.
Uma das muitas aventuras do Homem que Calculava: 35 camelos recebidos de herança deveriam ser repartidos por 3 irmãos. Beremiz efetuou uma divisão que parecia impossível, contentando os 3 querelantes. Tudo aconteceu da seguinte forma: o irmão mais velho esclareceu a Beremiz que, segundo a vontade de seu pai, deveria receber a metade dos camelos; o irmão, Hamed, uma terça parte e Harim, o caçula, a nona parte. Beremiz encarregou-se de fazer justiça, se permitissem que ele juntasse aos 35 camelos de herança, o belo e único animal que os trouxera, a ele e seu companheiro de viagem, até ali. Ficariam assim, 36 camelos. Dirigiu-se ao irmão mais velho, falando que ele deveria receber a metade de 35, isto é, 17 e meio. Receberia a metade de 36, portanto, 18 camelos. Quanto ao segundo herdeiro, que deveria receber um terço de 35, isto é, 11 e pouco, receberia um terço de 36, isto é, 12 camelos. Quanto ao jovem, que deveria receber uma nona parte de 35, isto é, 3 e tanto, receberia uma nona parte de 36, isto é, 4 camelos. Assim, somando-se 18+12+4, obteve-se o resultado de 34 camelos. Um pertencia ao beduíno e outro tocou a Beremiz por ter resolvido a contento e com justiça o complicado problema da herança. E seguiram em dois camelos a jornada para Bagdá.
O romance prossegue com as aventuras do Homem que Calculava: encontra um rico xeique a morrer de fome no deserto e aceita a proposta que ele fez sobre os 8 pães que traziam, pagos com 8 moedas; numa hospedaria, Beremiz resolve um problema e determina a dívida de um joalheiro; fala com os médicos do rei Artaxerxes sobre a importância dos médicos estudarem Aritmética para aprenderem a raciocinar com perfeição e serem capazes de descobrir meios seguros de debelar epidemias; no palácio do vizir Maluf, conta, de maneira original, uma cáfila numerosa; explica regras de jogos com formas geométricas; desvenda os segredos da Álgebra, da Mecânica e da Astronomia; esclarece que os números governam o mundo e Deus é a Unidade, o Uno, Eterno e Imutável e a Matemática, a base de todas as ciências e de todas as artes. O poeta, por exemplo, é o calculista que conta as sílabas e mede a cadência musical dos versos. Finalmente, Beremiz é recebido no palácio do califa, onde fala sobre os poetas e a Amizade entre os homens e os números.
Eu já havia passeado pelos jardins da Matemática através da leitura de um outro livro, o Aritmética da Emília, da coleção do Sítio do Picapau Amarelo, do escritor de Taubaté/SP, Monteiro Lobato. O Visconde de Sabugosa, sábio famoso, inventou uma viagem científica ao País da Matemática. Armou um circo no pomar do Sítio: o pano, as arquibancadas, os mastros, tudo de faz-de-conta. Era o “Grande Circo Matemático”. Os artistas eram os Algarismos Arábicos: o 1, o 2, o 3, o 4, o 5, o 6, o 7, o 8 e o 9. O Zero não participava porque era conhecido como Nada. Depois entraram os aposentados Algarismos Romanos; a Dona Unidade; a Madame Quantidade; os Números Pares e os Números Ímpares e todos fizeram manobras e acrobacias no picadeiro. Durante o intervalo, a negra tia Nastácia serviu uma melancia inteira, que foi dividida em pedaços ou frações. O porco, Marquês de Rabicó, marido da boneca falante, Emília, ficou com as cascas. A brincadeira foi interrompida com a chegada do correio com uma porção de livros encomendados por Dona Benta, essa avó e professora nata, que misturava SABER e SABOR, que mostrava aos netos de forma lúdica como o conhecimento pode ser uma fantástica aventura. Entre os livros, vieram os de Malba Tahan, “um misterioso árabe que conta lindos apólogos do Oriente e faz as maiores piruetas com os números”. Dona Benta passou a noite a ler o Homem que Calculava disse que o tal homem só não calculou uma coisa: que com suas histórias ia fazer uma pobre velha perder o sono e passar a noite em claro. Emília declarou que O Sabugo que Calculava não valia o sabugo da unha de O Homem que Calculava. Como Monteiro Lobato é divertido e mágico. Ele e Malba Tahan marcaram minha infância de menina sonhadora.
Sobre o fato de ter me dedicado ao estudo da língua portuguesa e ter esquecido completamente o conteúdo de todas as lições de matemática, escrevi o poema Gramática:
Sempre fui estudiosa de gramática,
Interessei-me primeiro pela sintaxe das estrelas:
A posição de cada constelação,
Os núcleos dos corpos celestes,
Os complementos lácteos do cosmos;
Depois passei para a morfologia dos pássaros:
Anotei nomes de aves,
Qualidades de cor e pluma,
Numerei caudas, leques e bicos;
Foi exaustiva a fonética dos peixes,
Transcrever os sons das baleias,
Dos golfinhos,
O burburinho dos cardumes;
A parte mais difícil foi a concordância entre a terra,
O fogo
E o ar,
Tive que fazer um teste de elementos
Num campo perfumado de macieiras.
Sempre fui estudiosa de gramática,
Pareceu-me um absurdo a matemática!
Reconheço que o estudo da Matemática contribui para uma boa formação espiritual: exercitando a atenção, desenvolvendo a vontade e a inteligência. Refletir sobre um certo objeto que nos ocupa os sentidos, observá-lo em todos os seus aspectos, aproximá-lo de outros objetos análogos, apreender vínculos tênues e ocultos (trabalho de poeta), seguir uma cadeia de deduções, tudo isso dá hábitos de paciência, precisão, rigor. Eleva e encanta o espírito na contemplação de teorias ordenadas e resplendentes de clareza e síntese (outro trabalho de poeta).
A Matemática é uma verdade divina. Sigo contando os versos de meus poemas, medindo a altura de uma estrela, aplicando fórmulas secretas, sem me preocupar com os louros que possa tirar de meus cálculos e estudos. Não abro mão do sonho e da fantasia, pois sem eles a ciência é morta.
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