Texto/Poesia - Lixo, por Raquel Naveira
- Alex Fraga

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Quinta-feira no Blog do Alex Fraga é dia de texto/poesia com a escritora e poeta de Campo Grande (MS), Raquel Naveira, com "Lixo".
LIXO
Raquel Naveira
O homem na sua condição mísera e efêmera vive o grande problema de acumular lixo, sujidade, imundície, coisas velhas e imprestáveis. Mas o poeta fareja poesia até no lixo, como um cão perdigueiro.
Manoel de Barros (1916-2014), por exemplo, na sua poesia frenética, de quem “cata” palavras, tira ciscos de monturos, afirma no seu livro “Arranjo para assobio” que “Aceita-se entulho para o poema”. Ele é o poeta das brechas, da sarjeta, da gosma, da escória, da ferrugem, do traste, das tripas, dos trapos, dos restos, das latas, dos líquenes, dos desvãos, da água suja, das ruínas, dos restolhos, das lesmas, do musgo, dos espinheiros, dos escombros, dos brejos, dos antros, dos bueiros, dos sapos esmagados, dos caramujos, das paredes bichadas, dos baldrames podres, dos brinquedos quebrados, engrenagens enferrujadas, o que se preocupa com as coisas inúteis, os “inutensílios”. É um modo de ver o mundo, estratégia poética para valorizar o que é desprezado, deslocado ou invisível.
Lixo para Manoel de Barros é o ser e estar marginalizado e solitário, é tocar a epifania de tudo que é ínfimo e humilde pode ser elevado, engrandecido. É ser grão de areia no deserto, fagulha de vaga-lume. É recolher tudo aquilo que a maioria joga fora para fazer poesia.
Já Cora Coralina (1889-1985), em “Poemas dos Becos de Goiás e Estórias Mais” descreve os becos e o lixo de sua cidade. Cora trabalha o lixo como realidade social, ela que conviveu com pessoas pobres, humildes, catadores, lavadeiras, mulheres simples. Para ela o lixo é lugar de luta. Espaço onde vivem os que lidam com resíduos, restos e sobras. Cora cresceu observando as vielas, quintais e ruas de Goiás. O lixo lhe traz restos de vidas, histórias silenciadas, fragmentos do passado. Em “Do Beco da Vila Rica”, Cora canta as “galinhas mortas, fedorentas apodrecendo aos deus-dará”; os gatos mortos; os monturo onde se amontoam badulaques: botas, trabuco, gibão de couro, sapatos velhos, bacias, potes, panelas, balaios, gamelas e outras “furadas serventias”. Pairando sobre o lixo, mosquitos, muriçocas, borrachudos e de repente, na cheiração ardida, brotam flores, bonitas amarelas, roxas, solferinas, vagabundas e desprezadas.
Pensando nesses poetas-bichos que procuram trilhas poéticas no lixo, escrevi o poema
“Bicho Esquisito”:
Poeta é cão perdigueiro
Farejando tudo:
Até no lixo
Encontra cascos de estrela.
Poeta é inseto de antena,
Captando sons,
Imagens,
Mensagens telepáticas.
Poeta vive procurando rastros,
Códigos cifrados,
Hieróglifos em rosetas.
Poeta vive deixando trilhas,
Caindo em armadilhas,
Desvencilhando-se de teias.
Poeta vive catando sinais,
Atento a gestos, a gosmas,
A gemidos no vento.
Poeta é bicho esquisito,
Meio cachorro,
Meio mosquito
E com mania de perseguição.
Há também o lixo espiritual. Somos donos de fazer do nosso coração um sótão, um antro, um monturo de lixo: o lixo-ódio, o lixo-falta de perdão, o lixo-luxúria e ilusão. Eu, quando percebo, estou com o coração dolorido e abarrotado de trastes e poeira. Saio de dentro de mim, confesso e tenho a impressão de que fiquei limpa como um punhado de neve. Tenho certeza de que todo o lixo foi varrido. Coloco um jarro de rosas no meio dos meus sentimentos. Mas não tem jeito, as rosas fenecem com cheiro forte, eu entro e começo a sujar tudo de novo.
Não será chegada a hora da humanidade fazer uma reciclagem do lixo? Esse processo de transformar materiais em novos produtos? Ressignificar tudo? Ter a esperança de que as pessoas excluídas podem encontrar seu caminho? Uma atualização cultural, moral e espiritual para sobrevivermos, para não nos atolarmos no lixo?





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