Texto/Poesia - Jó, por Raquel Naveira
- Alex Fraga
- 6 de mar.
- 3 min de leitura
Atualizado: 13 de mar.

Quinta-feira no Blog do Alex Fraga é dia de texto/poesia com a escritora e poeta de Campo Grande (MS), Raquel Naveira, com "Jó"
JÓ
Raquel Naveira
Quando falamos sobre Jó, lembramo-nos de expressões como “a paciência de Jó”, “pobre feito Jó”, “a perseverança de Jó”. Jó é um personagem virtuoso e com um caráter bastante complexo.
Satanás, o Adversário, recebeu poderes para arruinar Jó. Deus autorizou-o a afligir Jó com sofrimentos e calamidades para testá-lo em sua sinceridade e piedade. Provando sua retidão, Jó finalmente é recompensado com redobrada prosperidade. Com restauração de sua posição material e social. Ao longo de sua provação, Jó não rejeitou a Deus, ao contrário, agarrou-se a Ele com desespero, com intimidade.
A história de Jó mostra a insignificância do homem, a fugacidade e a ignorância da vida humana, o propósito disciplinador do infortúnio, o louvor a Deus, a felicidade do penitente.
Como são fortes as palavras de Jó: “Nu saí do ventre de minha mãe e nu voltarei para lá. O Senhor deu, o Senhor o tirou. Bendito seja o nome do Senhor.” Deus inverte constantemente as fortunas dos homens e a verdadeira sabedoria é muitas vezes inacessível.
Jó, que por um momento desejou não ter nascido, que colocou seu desejo de morte com paixão descontrolada, tornou-se porta-voz dos desgraçados e miseráveis da terra.
O escritor gaúcho Carlos Nejar (1939), radicado agora no Rio de Janeiro, membro da Academia Brasileira de Letras, escreveu um longo poema intitulado “O derradeiro Jó”, um monólogo em que o poeta se põe na pele da personagem dizendo: “Sou Jó/ o que não sabe,/ o que não viu/ o nome/ e é ninguém.”
Nejar lembra que, embora a mulher de Jó, em uma áspera e irônica discussão, tenha sugerido que ele amaldiçoasse a Deus e morresse de uma vez. Jó resistiu e não negou seu Deus: “E se quiseram que negasse/ Deus, não/ O neguei/ Pois o consigo ter debaixo dos escombros/ dos cacos surdos/ que da pele caem.”
O poeta continua seu canto doloroso, agônico, repetindo: “Sou Jó/ E eu, Jó/ Já sem amarras/ de algum possível vento”; “E eu, Jó,/ Sento-me à beira/ para colher prosódias e alfazemas”; “Eu, Jó, tiro o chapéu/ ao velho homem/ procurando a infância”. Lirismo puro, entre o sagrado e o profano. O poeta conclui: “Sou ninguém e Jó”.
Nejar também se refere aos amigos de Jó. Amigos acusadores, que zombaram dele, que o culparam, que alegaram que seu sofrimento deveria ser resultado de um pecado grave contra Deus e que Jó precisava arrepender-se de seus atos. Mas Jó tinha consciência de sua retidão e pega os amigos de surpresa com uma rebelião apaixonada contra o julgamento de Deus: “Zombas, tu que sabes/quanto doem as palavras.”
Jó torna-se a personificação da dor: “A dor tem rosto de homem./ A dor é Jó.” Nascidos para a miséria, quando sofremos, somos Jó. Mas a dor não é maior que a
esperança e que o sonho: “Jó, o que recebeu/ em dobro de bens e soldo. O que não/ deixou que a dor/ fosse maior que o sonho,/ Com a fé acima/ das estrelas/ e sobre o firmamento/ E cuja sorte/ mudada foi,/ quando orava/ por seu povo.”
Também eu, num momento de dor extrema, escrevi este desabafo com a voz de um Jó:
Por que ele se tornou meu adversário,
Meu inimigo íntimo,
Ele, o mais belo dos arcanjos,
O mais privilegiado de meus frutos,
O mais chegado a meu seio?
Por que discordou,
Não seguiu o caminho indicado
E inventou artes de guerra contra mim?
Foi fogo que caiu do céu
E consumiu minhas ovelhas?
Furacão do deserto
Que arrastou minha casa?
Nuvem,
Eclipse,
Redemoinho?
Não vejo mais as estrelas da madrugada,
Minha vida é um barco de junco
No mar salgado.
Alimento-me de suspiros,
Bebo a água de meus gemidos,
Mostra-me, Senhor, em que falhei,
Sou escravo exausto
Suplicando por sombra.
Ele cravou setas de veneno em meu espírito,
Dá-me paciência para suportar
Tamanha agitação,
Tamanha angústia:
Ele se tornou meu adversário,
Meu inimigo íntimo,
Justo ele.
Quando nos resignamos e percebemos que somos poeira e cinza diante da grandeza cósmica, Deus pode sorrir e reverter a nossa sorte.
Lindo texto.
Marcos Mendes de Lima
Socorro SP
Raquel sempre primorosa. Um texto pra reflexão profunda.
Sandro de Paula - São Paulo SP
Excelente. Maravilhosa.
Luciana Teixeira
Campo Grande MS
O relato sobre Jó (que ainda não temos certeza de ser histórico ou construído) é a desconstrução do Deus bondade... é maravilhoso estudar Jó e agora, com essa poesia vou fazer melhor... com mais literatura