
Quinta-feira no Blog do Alex Fraga é dia de texto da escritora e poeta de Campo Grande (MS), Raquel Naveira, com "Lendo VIrgílio"
LENDO VIRGÍLIO
Raquel Naveira
Certa vez, um jornalista me perguntou qual era o meu clássico preferido. A resposta foi instantânea: Eneida, de Virgílio (70 a.C-19 a.C.) Converso com Virgílio há anos. Se Nélida Piñon confessou que é aprendiz de Homero, eu sou aprendiz de Virgílio. Sempre lendo e relendo suas páginas, meditando sobre os dramas das personagens, apontando detalhes da tradução, a escolha dos adjetivos, os arranjos das palavras, a precisão e a força das metáforas, dissecando, enfim, o estilo do mago. Virgílio transita pelos planos temporais: passado, presente e futuro encontram-se muitas vezes condensados numa pequena expressão. Quando ele conta, por exemplo, que os troianos carregaram para dentro da cidadela o cavalo de madeira, “a máquina fatal” que penetrara dentro das muralhas, prenhe de armas, já imaginamos as cenas vindouras: o cavalo é máquina mortífera, que provocará a guerra, o infortúnio, a tragédia. A poesia surrealista está acoplada à própria atmosfera mítica do relato: o herói que fica invisível sob um manto mágico, aparições de deuses alados, dragões que saem do mar. Cenas de fugas, incêndios, gestos de amor filial e conjugal, aparições de fantasmas, bosques sagrados, travessias a outros mundos em meio à natureza perigosa, pontes que se erguem a todo instante unindo o natural ao sobrenatural. Como Virgílio é atual e profundo.
Virgílio é amigo da minha alma. Assim como o foi para Dante Alighieri, que nasceu em Florença, em maio de 1265, numa época de grandes amores e grandes ódios, de fé exaltada, de aberrações dolorosas. Quando Dante, na Divina Comédia, resolveu percorrer as paragens espirituais do Inferno, situado, segundo ele, debaixo de Jerusalém; da montanha do Purgatório e dos céus circulares do Paraíso, pediu ajuda a Virgílio para que fosse o seu guia. Não importam os milênios que separaram Dante de Virgílio, nem os que separam esses poetas de mim. Integro-me a eles nessa jornada, pois preciso que eles me habitem para criar poesia, para revelar mistérios, para poetizar o mundo.
Como esquecer aquele momento incrível em que Dante encontrou Virgílio? Dante desceu ao vale silencioso, divisou um vulto e gritou: “Tem pena de mim quem quer que sejas, sombra ou homem verdadeiro.” E Virgílio respondeu que um dia fora homem, que nascera nos tempos de Júlio César, que vivera em Roma na época do bom imperador Augusto, quando ainda se adoravam falsos deuses. Explicou que ele, como poeta, cantara as proezas de Eneias, depois do incêndio de Troia. Dante exclamou aflito: “Oh! És, então, Virgílio, fonte de onde jorra em abundância a vibração poética?” Apiedado do pranto de Dante, Virgílio se propôs a levá-lo ao bom caminho, a ser seu guia pela região do padecer eterno. Dante rogou então, em nome do Deus, que Virgílio não conhecera, para que todo mal fosse afastado. E nessa proteção, pôs-se a caminhar com Virgílio. Caminho atrás deles.
O dramaturgo, Paulo Corrêa de Oliveira, da Academia Sul-Mato-Grossense de Letras, primo do grande ator Rubem Corrêa, de Aquidauana, Mato Grosso do Sul, escreveu e encenou uma peça de teatro intitulada Divina Comédia/MS (Mato Grosso do Sul), em que ele encontrava, qual Dante, no meio da jornada da vida, com o poeta Lobivar Matos, que seria o seu guia, como Virgílio, pelos caminhos da arte desse estado do Brasil Central. Lobivar nasceu em Corumbá, em 1915 e faleceu muito jovem, aos 32 anos de idade. Seus livros, Areotorare, nome do índio profeta, contador de histórias da tribo bororo e Sarobá, bairro pobre da zona portuária, foram marcos da poesia modernista naqueles rincões. Lobivar passeia com o dramaturgo inspirado em Dante pelas páginas
da Guerra do Paraguai em Retirada da Laguna, de Visconde de Taunay; pela poesia lúdica e surpreendente de Manoel de Barros; pelo canto agudo dos pássaros nos abismos e na garganta de Tetê Espíndola; pelos quadros de Lídia Baís e Humberto Espíndola; pelos imensos valados do futuro. Eu, Raquel Naveira, ó glória, fui apresentada como uma estrelinha pendurada no Empíreo, perto da Cândida Rosa.
A narrativa da destruição de Troia, na Eneida, é emocionante. Começa com o estratagema do cavalo de madeira. O jovem grego Simão recebendo a incumbência de convencer os troianos de que o cavalo era um presente dos gregos para compensar o roubo do Paládio de Minerva. Os troianos acreditam, abrem os portões e levam para dentro de Troia o gigantesco cavalo. À noite, os navios voltam, gregos armados saem do interior do cavalo e abrem as portas da cidadela. Os troianos dormiam exaustos, quando os gregos começaram o massacre.
Há uma passagem em que Laocoonte, um sacerdote de Netuno, suplica aos troianos que tenham prudência, que não introduzam na cidade o cavalo suspeito, que não confiem naquele “presente de grego”. No meio de sua fala, duas serpentes monstruosas vindas do mar o estrangulam e o povo, enganado, coloca o cavalo no meio da praça. Isso nos mostra que não cremos nos profetas, que não queremos ouvi-los quando dizem a verdade. Escrevi o poema:
A história de Laocoonte,
Eu me horrorizo contando:
Laocoonte,
Sacerdote de Netuno em Troia,
Opôs-se à entrada do cavalo de madeira:
“É a morte,
A destruição,
A mão do gatuno,
Este é o momento oportuno
De acabar com o inimigo,
Reúno o povo,
Atiro um dardo contra essa estátua de carvalho
E puno os heróis gregos.”
Eu me horrorizo contando
A história de Laocoonte,
Ninguém ouviu o sacerdote,
A flecha produziu um som oco na barriga do cavalo,
Armas tilintaram,
Houve sinal de fogo no horizonte,
Enquanto a máquina penetrava
Pela ponte da cidade.
Não termina aqui
A história de Laocoonte,
Contando,
Horrorizo-me:
O sacerdote imolava um touro
Diante do altar,
Quando serpentes vindas do mar,
Emparelhadas,
Avançaram pela praia
Com suas cristas sangrentas,
Seus olhos ardentes,
Suas línguas vibrantes
E a dentadas
Despedaçaram
Laocoonte e seus dois filhos.
Que horror!
Fugi,
Pálido de susto
Por uma rua escura,
Morto Laocoonte,
O prudente sacerdote,
Pensava;
De longe
Vi meninos puxando o cabo
E moças enfeitando com flores
O monstro sinistro,
Enquanto se acendiam os primeiros astros
E os derradeiros archotes.
Há muitas outras páginas humanistas nesse livro: o amor e a morte da rainha Dido fazendo refletir sobre o relacionamento homem-mulher, a destruição de Troia, o amor filial de Eneias pelo pai Anquises.
Sou mesmo apaixonada por Virgílio. Imagino-o como uma das mais belas criaturas do mundo. Nele há de tudo: a sabedoria oriental, o logus grego, a civilização romana. Imbuído da cultura grega, conhecedor profundo da Ilíada e da Odisseia de Homero, Virgílio patenteia a influência de ambos os poemas, criando uma vasta epopeia patriótica destinada a legitimar pela evocação de suas origens ilustres, as altas aspirações de Roma. A Eneida, porém, é original, tomou um rumo diferente dos poemas homéricos. Tem outra visão de mundo. Em confronto com a avidez dos generais gregos que vão à Troia visando riquezas e buscando fortuna, Eneias é um herói pacífico, humanitário, piedoso, pio, no sentido ético dessa palavra. Ele participa de uma guerra de defesa. Não o motiva a ambição, apenas cumpre a vontade divina de fundar na Itália uma nova Troia. Sacrifica-se para cumprir uma missão de interesse coletivo. Também eu não desconheço os infortúnios. Esforço-me para socorrer os infelizes, para salvar os meus. Sou aprendiz de Virgílio.
Texto espetacular!!! Parabéns, talentosíssima Raquel!!!