Um dos principais nomes da literatura sul-mato-grossense, a escritora e poeta Raquel Naveira tomou posse no última de 1 de dezembro, na Academia Paulista de História. Em seu discurso homenageou o historiador Hernâni Donato, que pertenceu à Academia Paulista de História, à Academia Paulista de Letras e à Academia Sul-mato-grossense de Letras, pela importância de seu livro "Selva Trágica", clássico de nossa literatura.
Leia abaixo o discurso de posse:
Senhores e Senhoras,
O estudo da História sempre me entusiasmou. Conhecer os fatos e os acontecimentos notáveis ocorridos na vida da humanidade, o desenvolvimento do espírito considerado em suas relações sociais e com o Estado. Observei que a História está ligada à Filosofia. Voltei-me não só para a compreensão dos fatos, mas também para a sondagem das almas e dos sentimentos das pessoas.
Esse interesse pela pesquisa, pelos romances históricos, pelos poemas épicos marca os meus textos, crônicas, romanceiros, ensaios, produção acompanhada há bastante tempo pelos confrades desta douta Academia Paulista de História. Certamente é o que justifica a minha honrosa chegada a esta Casa.
São Paulo, cidade complexa, sempre esteve na minha história pessoal e na história de meu Estado, o Mato Grosso do Sul. Aqui esclareço que nasci no Mato Grosso uno, antes da criação do Estado de Mato Grosso do Sul e me sinto pertencente a um Pantanal sem limites, que não se divide com régua, como escreveu certa vez o poeta Manoel de Barros, meio cuiabano, meio corumbaense e campo-grandense como eu. Durante dois períodos vivi em São Paulo: de dois até doze anos, tendo estudado no Liceu Pasteur e dos 49 a 59 anos, com meu esposo Adhemar e filhos, que se formaram, residem e trabalham nesta metrópole. Dois períodos que fizeram de mim cidadã do mundo, com raízes e asas entre o sul de Mato Grosso e São Paulo.
A cadeira número 30 que me coube neste Sodalício tem como patrono Brasílio Augusto de Oliveira Machado, que nasceu em São Paulo em 1848 e aqui faleceu em 1919. Advogado, promotor público, professor na Faculdade de Direito. Foi um dos fundadores da Academia Paulista de Letras e do Instituto Histórico e Geográfico de São Paulo. Escreveu contos e folhetins, sob o pseudônimo de Júlio D’Alva e trabalhos sobre poesia popular. Em 1884 recebe carta imperial convidando-o a assumir a presidência da província do Paraná. Apesar das dificuldades financeiras e da crise ervateira, a sua administração trouxe obras fundamentais como a construção da catedral de Curitiba, abastecimento de água potável, intensificação da imigração, alforrias que reduziram em muito o total dos escravizados do Paraná, a inauguração da estrada de ferro Paranaguá-Curitiba, com as presenças da Princesa Isabel e de seu esposo, o Conde d”Eu. Um homem dedicado à política e às letras.
Minha antecessora, Professora Doutora Nelly Martins Ferreira Candeias, tive o prazer de conhecer e conviver com ela em algumas ocasiões. Professora Nelly nasceu em São Paulo, em 1930, onde faleceu em 2021. Tinha uma personalidade forte, luminosa, cheia de vigor e liderança. Era refinada, elegante, uma verdadeira dama paulistana. Formada em Filosofia e Ciências Sociais pela Universidade São Paulo (USP), na qual lecionou. Foi presidente do Instituto Histórico e Geográfico de São Paulo. Escreveu, entre outros, o livro “Saúde Ocupacional no Brasil: um compromisso incompleto”, premiado pela Fundação Odebrecht. Nas sessões do Instituto organizadas por ela, havia sempre
enfeites de flores, uma apresentação musical, o som do piano que ela amava, um palestrante competente com brilho de inteligência nos olhos, expondo algum tema voltado para a história do povo brasileiro. Um encantamento. Além disso, muitas vezes nos encontrávamos num supermercado de Higienópolis, onde conversávamos rapidamente fazendo compras para nossas casas. Recebia sua atenção, gentileza e convites.
Meu desejo é, nesta manhã de júbilo para mim e para os sul-mato-grossenses, trazer alguns assuntos que realmente unam ainda mais o sul de Mato Grosso e São Paulo. Pensei, primeiramente, na importância da estrada de ferro Noroeste do Brasil para nosso Estado. Tenho uma alma ferroviária. Campo Grande era entrecortada pelos trilhos da Noroeste. Seu traçado ia de Bauru até Corumbá, fazendo integração com a Bolívia. O Trem do Pantanal ou Trem da Morte levava passageiros a Santa Cruz de la Sierra. Um dia, de repente, removeram os trilhos dos cruzamentos do centro comercial. Restou apenas uma linha turística que faz o trajeto Campo Grande, Aquidauana e Miranda.
Vivi o apogeu da Noroeste. O trem penetrou no meu imaginário. Serpente de ferro rangendo. Lembro-me do saguão da estação, hoje uma plataforma cultural. O relógio com seu enorme quadrante marcando o tráfego dos trens, estabelecendo rotas, nivelando os destinos de forma implacável. O embarque era o ponto de partida; a fronteira, uma direção possível. As pessoas carregavam ponchos coloridos, pacotes, chapéus, mantas, cestas, baús, enfim, todos os bens e objetos indispensáveis para a travessia sul-americana.. No coração e na mente, levavam o equipamento do passado: as forças, as lembranças, as trôpegas esperanças. No percurso, eram distraídos pela paisagem pantaneiras: camalotes e guavirais, charcos, bichos que saltavam espavoridos à passagem do monstro modorrento. Um trem-fantasma que se diluía na bruma com sua carga preciosa de história e poesia.
O historiador Gilmar Arruda assim escreveu:
“No início do século, o sertão de Mato Grosso era uma região longínqua demais, quase inacessível, talvez perdida dos rumos da civilização. Campo Grande fazia parte daquele espaço. Um povoado esquecido no meio do sertão, pequeno, pouco habitado, mas violente, com apenas uma rua, mas sem espaço para os que não fossem iguais, ou seja, os donos de terra e de gente. Esta vila, em breve entraria para a história, para a civilização pelos trilhos da Noroeste do Brasil.”
Antes da ferrovia, portanto, Campo Grande não passava de uma vila coberta de poeira vermelha. Depois, eis a cidade surgida do limbo, promissor núcleo urbano, centro comercial, econômico e político, estratégico para a circulação de mercadorias e ao processo de acumulação da capital monopolista. A ferrovia provocou um processo de transformação e crescimento da cidade.
Outro ponto: a história da criação do Estado de Mato Grosso do Sul está intimamente ligada à Revolução de 32, assim nos explica Artur Jorge do Amaral em seu opúsculo “9 de Julho”. Vejamos: na tarde de 08 de julho de 1932 um telegrama urgente, postado no Rio de Janeiro, exonerava o General Bertoldo Klinger do cargo de Comandante da Região Militar do Mato Grosso. Era uma represália à sua eloquente popularidade. Sua ação atingira além-fronteiras, e, de São Paulo, Klinger recebera convite para ser o líder do Movimento Constitucionalista.]
Nos dias 9 e 10 de julho, ao seguir dos acontecimentos, o General recebeu as maiores manifestações de apreço, todos ávidos pelas instruções para uma pronta reação, pelas armas, se preciso fosse... Ele, como Chefe Revolucionário, constitui um Estado independente para gerir a região sul de Mato Grosso. Estava instalado um Estado Revolucionário, desvinculado da capital Cuiabá. Foi designado governador provisório, o Dr. Vespasiano Martins. O governo passou a despachar no prédio da Loja Maçônica, na Avenida Calógeras. Enquanto isso, o General Klinger seguiu para São Paulo, pelo trem da Noroeste. Por onde passava era recebido com júbilo pelo povo. A apoteose foi na Estação da Luz, em São Paulo, onde milhares de pessoas aguardavam em delírio pela causa. Nesse clima foram unidos nessa luta de ideais, o grande Estado de São Paulo e o sul de Mato Grosso, numa eclosão de sentimentos nacionalistas em busca de uma Constituição que orientasse o país com liberdade e democracia.
Entre nós, sul-mato-grossenses ficou a força de que não nos curvamos diante dos infortúnios e injustiças. Em noventa dias, foi desfeito o governo provisório e os seus líderes seguiram para o exílio. A necessidade de obter emancipação regional culminou na Lei Complementar assinada pelo General Geisel, 41 anos depois, no dia 11 de outubro de 1977, quando foi criado o Estado de Mato Grosso do Sul, com a capital em Campo Grande, somente implantado em 1979.
Faço uma pausa para os agradecimentos: a Deus; ao meu esposo Adhemar Naveira e a toda minha família; ao Professor Luiz Gonzaga Bertelli e na pessoa dele a toda a Academia Paulista de História; ao Dr. Juarez Avelar e na pessoa dele a toda a Academia Cristã de Letras de São Paulo e ao jornalista José Nêumanne Pinto representando os amigos presentes.
Finalizando, presto homenagem ao historiador Hernâni Donato. Ele pertenceu a essa Academia Paulista de História e à Academia Sul-Mato-Grossense de Letras. Escreveu “Selva Trágica”, um romance-documento ambientado no sul de Mato Grosso, que retrata a triste situação dos trabalhadores da erva-mate, na região fronteiriça do Brasil-Paraguai, explorados pela Cia Mate Laranjeira.
No discurso de posse na Academia Sul-Mato-Grossense de Letras, Hernâni contou que houve uma tese considerada herege durante a Idade Média, de que o paraíso de fato existira e estaria localizado próximo à Serra de Maracaju.
Escrevi então o poema “O Paraíso era aqui”:
O paraíso era aqui,
Ao pé da serra,
Onde os jequitibás se erguem frondosos,
O ar rescende a baunilha
E abrem-se os leques de buriti.
O paraíso era aqui,
Onde as laranjas ganham sumo,
Os abacates se encorpam
E a terra se trinca
De caraguatás e abacaxis.
O paraíso era aqui,
Nas matas passeiam onças pintadas,
Veados pastam flores,
Lobos de caudas vermelhas,
Lontras e quatis.
O paraíso era aqui,
Por toda parte há ouro,
Mármore ladrilhando ruas,
Blocos de diamantes,
Lágrimas de rubi.
O paraíso era aqui,
Eu o sinto toda vez que subo nesta pedra,
No meio do rio Taquari.
E a maçã?
Bem, poderia ter sido um caju ou um caqui.
Viva Mato Grosso do Sul!
Viva São Paulo!
Muito obrigada!
São Paulo, 1º de dezembro de 2023.
Na Associação Comercial de São Paulo.
Rua Boa Vista, 51-9º andar (Centro), às 10horas.
A Cultura nos presenteia e muito nos enriquece com a escritora RAQUEL NAVEIRA.