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Reflexão – Diário de uma Idosa 28, por Joana Prado Medeiros

Sexta-feira é dia de reflexão ao Blog do Alex Fraga, da historiadora, professora universitária, poeta e escritora de Dourados (MS), Joana Prado Medeiros com Diário de uma Idosa 28.




Tenho náuseas vontade de vomitar.... A noite era grande, muito grande eu ficava ouvindo músicas com o meu radinho meu “companheirinho”. Ele era um quadrinho coberto por uma capa verde oliva e eu detestava aquela cor que lembrava os milicos, então, resolvi rabiscar a capa com caneta ficou um azulão e a tinta demorou um pouco a secar naquele corino, esfreguei uma flanela no bicho e ficou um tom azulado marruscado de verde, não contente esfreguei canela em pó e dai sim ficou uma cor indecifrável parecendo uma mistura de marrom ficou ferrugem sei lá ficou assim com cara de envelhecido até hoje me pergunto mode que não guardei feito um tesouro o tal do meu radinho. A noite grande engradava cada vez mais dentro de mim. Eu tinha pressa e a noitona não passava, lia feito amante apaixonada todos os livros que encontrava. Tinha um vizinho dentista e na casa dele havia uma biblioteca eu me ofereci para ajudar a dona da casa a lavar as calçadas em troca de ter acesso a biblioteca e assim todas as semanas emprestava livros e os devorava. Descobri os comunistas lendo Jorge Amado enquanto ouvia e que tudo mais vá pro inferno eu apanhava na boca porque não podia falar inferno, e nesse inferno ficava pensando se existia mesmo os comunistas do cais do Porto de Santos. Com uma série de indagações meus cabelos e seios cresciam e os receios também, não conseguia entender por que meus pais trabalhavam tanto e não tínhamos uma biblioteca daquela do vizinho, meu pai gostava de ler e em casa não tinha cem livros, eu nem em pensamento pedia para comprar um. Para mim eles eram uma espécie de tesouro que só os ricos podiam ter e para completar havia uma enciclopédia chamada "Tesouros da Juventude" o meu sonho de consumo e a Barsa! Nossa senhora Marialivrera, daria o mundo pela Barsa eu sonhava embarcar na barsa e barsar, daria minha calça jeans Lee Riders e minha jaqueta de couro e o meu tênis Rainha. Mas, qual o que? eu me dava por contente de estudar em escola de elite, das freiras, que os meus pais pagavam com muito esforço e também da biblioteca desta escola eu fiz a minha morada preferida até hoje guardo nas narinas aquele cheiro de chão encerrado ( que tem nas casas das freiras e padres) com livros vem dai o meu hábito de cheirar os livros, quando pego um acaricio com todo zelo, olho demoradamente a capa, o ano, a editora um verdadeiro ritual romanesco acontece, namoro o título, imagino títulos indago o porquê do mesmo, leio várias vezes o nome do autor fico imaginando a cara do autor, o que sentiu, por que escreveu se é vivo ou já morreu. Lia um capítulo e ficava tentado lembrar se já tinha visto ou vivido algo semelhante às vezes criava um enxerto com a história lida com minhas vivências, as palavras bonitas eu decorava para poder dizê-las em algum momento de minhas conversas. Tinha um dicionário Marco Aurélio que me acompanhava por causa do cheiro e porque eu buscava o significado de cada palavra desconhecida. Gostava, tanto que escolhia uma palavra para dizer por toda a semana e cada semana uma palavra nova era inaugurada. Tinha uma caderneta para anotações já que não podia anotar e riscar os livros que meus não eram. Anotava sobre os autores, lugar de origem, ano e copiava trechos. A noite grande me fazia e lia sozinha completamente autodidata tracei um plano de leitura inteiramente meu, desconhecia qualquer método. Em meu ensino médio já havia lido os clássicos da literatura brasileira e grande parte dos ganhadores do prêmio Nobel. Foi nessa (1976) época que me apaixonei por Machado de Assis. A magreza que eu carregava sustentava uma cabeça com uma cachopa de cabelos encaracolados e de enrolados pensamentos, amava a literatura mas minha preocupação com as diferenças sociais e minha paixão por eleições e partidos políticos eram maiores, não conseguia me conformar com a pobreza não conseguia aceitar que uns esbanja comida e outros morrem de fome, resolvi estudar história na época só queria mesmo saber como viveram os humanos no passado. Fui a sacerdotisa ao meu modo celebrei o casamento da literatura com a história, deste casamento fiz uma rede e nela deito até hoje. O ato de ler texto de Paulo Freire não me foi estranho pois nele vi minha vida inteira. No primeiro ano de história estudando os Hebreus resolvi ler a bíblia inteira somente como fonte histórica e só aumentou o desespero que destemperado ficou. Reprovava por faltas constantemente porque vivia na biblioteca ou nos corredores da facu. Foi quando sei lá eu como descobri Karl Marx e foi um deus nos acuda, comecei a ler e quem disse que entendia?! Li, reli, tornei a ler e nada, fiquei de cara com o Capital não entendi lhufas, li a Ideologia Alemã e nada. Peguei o Manifesto Comunista ai deu para surgir dúvidas bom se deu dúvidas é porque algum pensamento se processou. Naquele tempo do 477 e AI5 em nossa sala de aula havia um ou dois militares fazendo o curso, tudo era vigiado. Na minha carteirinha da biblioteca ficou registrado os livros que lia, foi um terror, um professor amigo desabalou até minha casa para contar a meus pais minhas leituras proibidas. Que a partir dai os meus velhos me vigiavam e me diziam do perigo comunista, meu pai dizia filha não quero ver você pressa. Ah! mais isso foi divino, foi a glória daí sim tomei gosto e no primeiro congresso que fui indaguei com muito cuidado quem sabia sobre os comunistas enquanto muitos festavam fui arrastada para uma reunião secreta e pronto a coisa foi lançada. E tanto lendo o lido e de pensar o pensando de alguém fui constituída e constitui o vivido o refletido e concebido. E hoje estou enjoada de escrever o escrito que em mim vivi. Estou de porre de tantas letras de tanta dança de palavras e estou de cara com tanta gente se dizendo escritor e poeta. É um varal, cabides na sala de um e noventa e nove de escritas chulas de pouca conexão que me enche o saco e como não tenho saco me enche os cotovelos. Estou deitando vômito ao culto do ego e aos pseudoescritores. Miserável, miserável, miserável ser... Você se vê em mim e eu me vejo em ti! É óbvio, criatura nós somos datados e filhos da mesma época. Do mesmo tecido entrelaçado deste país sem memória de compreensão histórica retalhada sem "consciência de nação" segue tocado o cone messiânico em busca de um Salvador da Pátria...E nós tecidos doentes e virulentos muitos escrevem mediocridades e tem o desplante de querer coloca-los na fileira dos grandes literários. Tem dó. Mas respeito com a literatura!!! Agora deu nisso quase todo mundo se achando poeta/escritor. É claro feito lua refletida no poço se é a época é medíocre o que esperar?! Não, não, não amanheceu a noitona que mora em mim...


( Joana Prado Medeiros - 01/05/2021) É pandemia. — sentindo-se de saco cheio.

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