Quarta-feira no Blog do Alex Fraga é dia de texto de reflexão com a professora universitária, historiadora, poeta e escritora de Dourados (MS), Joana Prado Medeiros, com seu Diário de uma Idosa 196.
DIÁRIO DE UMA IDOSA 186 - A DOR PRIMEIRA - MINHA BONECA DE LOUÇA...
Quando eu tinha seis anos ganhei minha primeira boneca de louça, ela era grande e tinha os cabelos longos loiros cacheados e os olhos azuis muito linda fiquei fascinada, um encanto. Era também desajeitada e não era confortável brincar com ela, exigia cuidados, mas a admiração era por tudo, as roupinhas o laço dos cabelos, a meia, os sapatinhos enfim, era uma boneca grande, pesada e dura. O contentamento para ser contentado veio com a organização de uma pequena cerimônia, aguardei ansiosamente a chegada dos meus primos e primas eles moravam na fazenda (onde antes eu também morava) meus pais vieram para a cidade há pouco, então no final de semana toda a criançada estava em minha casa, era a festa de apresentação da minha boneca de louça recordo que passamos a tarde no quintal, embaixo dos pés de erva mate e ali fizemos comidinha, riscamos no chão a casa da Marina minha prima, depois delimitamos a minha casa, também riscamos no chão do terreiro um caminho, os meninos brincando de cuidar os porcos espetaram pequenos gravetinhos no maxixe e estes eram os seus animaizinhos. Muitas conversas e faz de conta que o padre ia chegar para batizar minha filha e assim seguia a galope a tarde. Todos queriam pegar a boneca no colo, e foi uma gritaria porque alguns com as mãos sujas o vestido foi ficando meio marrom até que veio a mãe e pediu que guardasse a boneca ( era daquelas que tinha que ficar guardadas) bom, o fato é que a coloquei para dormir em minha cama e seus olhinhos fechavam e quando em pé as pálpebras abriam era de lascar tal lindeza. Seguia a tarde ensolarada e comemos amora, e brincamos na montanha de pó de serra que ficava ao lado da Serraria (eu morava em Caarapó -MS ) que meu pai era dono. E volta e meia e meia volta corria até o quarto para olhar minha filha numa daquelas entro no quarto e a encontro deitada de bruços achei estranho e quando levanto minha boneca de louça dou de cara com o meu primeiro horror, primeiro grito de pavor, primeira dor de desengano e traição minha boneca de louça estava com os olhos afundados um olho mais afundado que outro assim um completamente lá no fundo da cabeça e outro meio esbugalhado para fora. Recordo que cai no chão e o grito foi tão grande que imediatamente o quarto ficou lotado de olhos mudos me olhando, minha mãe me socorreu lembro vagamente que me deram banho, leite quente e também recordo que por uns bons dias não quis dormir em meu quarto e nem ver a boneca de louça, recordo que dormia soluçando e segurando o meu santinho Santo Antônio nas mãos. Escrevo agora isso e sinceramente ainda não quero escrafunchar o que senti naquele dia e nos dias seguintes. Ficou um silêncio, minha mãe tentou descobrir quem fez aquilo mas não descobrimos, também meu pai trouxe a boneca para Dourados (cidade melhorzinha) para consertar, mas, não houve conserto. Ficou guardada, de vez enquanto eu a pegava olhava alisava os cabelos mas não tinha graça aqueles olhos estragados era a dor inaugurada o primeiro testemunho da inveja e maldade ou inocência de uma outra criança querendo verificar o funcionando daqueles olhos azuis. Depois de alguns anos eu dei de presente a minha boneca de louça, dei para uma garotinha que não tinha condições de ter bonecas e ela ficou muito feliz e não ligou nadica de nada por conta dos olhos tronchos ela a conheceu assim e amou e pronto. Sinto que não estou derramando no papel tudo o que precisava derramar e também percebo o quão este fato ficou calado cá dentro, neste momento sinto o choro nos olhos e só. Vou marinar as dores daquela tarde, um dia volto a narrar, parece que eu senti a dor de perder um filho...Meus bracinhos erguidos eu sem acreditar que minha bonequinha tivesse sido mutilada, ferida...Em meus olhos nadam todo aquele dia.
( Joana Prado Medeiros - 10/10/2023 Direitos Autorais Lei 9.610, 19/02/98)
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