Crônica - O que é a verdade?, por Carlos Magno Amarilha
- Alex Fraga

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Sexta-feira no Blog do Alex Fraga é dia de crônica com o poeta e escritor de Dourados (MS), Carlos Magno Amarilha, com "O que é a verdade? ".
O QUE É A VERDADE?
Amanheceu o dia, e eu estava ansioso, afinal, hoje era dia de festa na Fazenda do Tio Napoleão Mieres, conhecido como Napo. A ansiedade me agitava desde a noite anterior, e finalmente o sol raiou, trazendo consigo a promessa de um dia cheio de aventuras. A fazenda ficava longe à beça, ficava depois do Rio Dourados, e naquela época, nada era asfalto, terrão puro. A viagem, por si só, já era uma aventura. Fomos em um carro que era um carrão na época, uma Rural toda invocada, lotada de crianças, entre primos e amigos, e os adultos em outros carros. A jornada até a Fazenda do Tio Napoleão já era uma aventura por si só. A Rural, um monstro azul de metal, era o nosso transporte, um veículo que parecia ter sido esculpido em ferro bruto, com bancos de couro rachados e um cheiro inconfundível de gasolina e poeira. O ronco do motor era uma sinfonia alta e constante, que se misturava com a algazarra das crianças, ansiosas pela festa. A Rural, enfrentava a estrada de terra batida como um touro bravo, sacudindo e rangendo a cada buraco e pedra. As janelas abertas deixavam o vento quente entrar, trazendo consigo a poeira vermelha da estrada, que se depositava em nossos cabelos e roupas. Dentro da Rural, a atmosfera era de pura excitação. Os primos e amigos se apertavam nos bancos, contando histórias, cantando músicas e planejando as brincadeiras que fariam na fazenda. O Tio Zeca, com seu chapéu de palha e sorriso largo, dirigia com maestria, desviando dos buracos e acenando para os outros carros que cruzavam nosso caminho. A viagem era longa, e a paisagem que se descortinava pela janela era um espetáculo à
parte. Campos vastos se estendiam até o horizonte, pontilhados por árvores e animais. O céu azul, com suas nuvens brancas e fofas, parecia se estender infinitamente. Finalmente, após horas de estrada, a Fazenda do Tio Napoleão surgiu no horizonte, um oásis verdejante em meio à vastidão do campo. A Rural, com um último ronco triunfante, estacionou em frente à casa grande, e nós, crianças e adultos, desembarcamos, ansiosos para começar a festa. Chegando lá, era aquela festa! Uns andavam de cavalos, explorando cada canto da fazenda, outros se aventuravam a moer cana para fazer garapa, e os adultos se entregavam à dança no salão enorme, ao som da música ao vivo. Os grupos de músicos se revezavam, garantindo que a festa nunca perdesse o ritmo. Entre outras coisas, eu e meus primos fomos andar nas matas e tomar banho no córrego próximo. A água fresca do córrego Curral de Arame era um alívio para o calor do dia, e as brincadeiras na mata eram sempre cheias de surpresas. As festas na fazenda eram sempre assim: muito churrasco, doces, bolos, picolés e as brincadeiras que as meninas inventavam à noite, sempre divertidas. Eu tinha doze anos e cada festa na fazenda era uma aventura inesquecível. Naquele dia, enquanto brincava com meus amigos na mata, me vi sozinho, em um lugar com muita lama. A solidão, porém, logo se transformou em contemplação. A natureza se revelava em detalhes: borboletas coloridas dançando sobre as flores silvestres, o canto melodioso do bem-te-vi ecoando entre as árvores, e os cascudos, peixes que pareciam esculpidos em barro, escondidos nas margens do córrego. O silêncio foi quebrado pela voz do Alencar, meu primo mais velho, que surgiu com um ar preocupado: "Mano, você viu um cachorrinho peludo, ela é de estimação da Mãe?" Respondi, com uma correção: "Tratava-se de uma cadela, e não de um cachorro". E prossegui: "É uma cachorrinha de caça que deu cria há pouco tempo; manqueja da pata dianteira esquerda e tem orelhas compridas". "Viu-a então?", tornou a perguntar, impaciente, meu primo. "Não", respondi, "nunca a vi e nem mesmo sabia que a sua mãe tinha uma cadela". A incredulidade estampada nos rostos dos meus primos e das pessoas que estavam acompanhando o sumiço da cachorra, logo se transformou em acusação. Fui levado à força para a sede da fazenda, onde a história se espalhou como fogo em palha seca. Meu pai, minha mãe e o Tio Napo, me encaravam com desconfiança, e um peão, furioso, me ameaçou, fisicamente, de tão furioso que estava, afinal a cadela era sua companheira para caça. Logo após a ameaça em voz alta que recebi, do nada, a cadela apareceu na sede da fazenda, pura sorte minha, livrando-me assim da acusação e do linchamento. Apesar disso, meu pai me deixou de castigo e não podia de jeito nenhum sair da sede, "por dizer que não vira o que tinha visto". Todos olharam para mim, querendo explicação. Então, comecei a falar o que havia sucedido: "Juro-vos que nunca vi a cadela da Tia Nini. Mas está aqui o que me sucedeu: andava eu
passeando pela mata na beira do córrego Curral de Arame, em que meu primo me achou. Percebi na lama perto do riozinho, pegadas de um animal e facilmente concluí serem as de um cão. Leves e longos sulcos, visíveis nas ondulações da lama entre os vestígios das patas, revelou-me tratar-se de uma cadela com as tetas pendentes e que, portanto, devia ter dado cria poucos dias antes. Outros traços em sentido diferente, sempre marcando a superfície da lama ao lado das patas dianteiras, acusavam ter ela orelhas muito grandes; e como, além disso, notei que as impressões de uma das patas eram menos fundas que as das outras três, deduzi que a cadela manquejava um pouco". Continuei a explicação, "E depois vim para a sede levado à força, porque meu primo e as pessoas que estavam com ele, a princípio, não acreditaram que eu pudesse ter descrito tão detalhadamente a cadela de minha tia sem tê-la jamais ter visto". (Parece inconcebível que alguém lograsse saber tanta coisa a respeito dos animais sem ter tido a experiência de encontrá-los cara a cara). Porém, eu consegui explicar aos meus tios, pais e presentes que, a partir dos rastros ou dos vestígios deixados pela cadela, eu fui capaz de construir descrições verossímeis da cadela da minha tia. Na verdade, havia articulado as pegadas disponíveis da cadela, no sentido de oferecer às pessoas pistas passíveis de estarem corretas dentro de seus limites e de seu ponto de vista, porém mais ou menos corretas, dependendo da importância do observador. Eu não vi a cadela da tia mesmo; apenas observei os rastros deixados por ela, analisei-os à luz de meus conhecimentos e fui capaz de construir uma imagem objetiva e verdadeira da cadela. Ou seja, eu consegui "ver" a cadela pelas marcas, pegadas, rastros, vestígios, deixadas nas lamas que ficava na beira do córrego Curral de Arame. No último dia da festa, enquanto todos se preparavam para a partida, um dos bezerros da fazenda desapareceu. O Tio Napoleão, preocupado, reuniu um grupo de busca, e eu, ansioso por uma última aventura, me ofereci para ajudar. Com a ajuda de Lalá, que se mostrou uma excelente rastreadora, seguimos as pegadas do bezerro pela mata. A busca nos levou a uma caverna escondida, onde encontramos o bezerro, preso em uma armadilha improvisada. Com cuidado, libertamos o bezerro e o levamos de volta para a fazenda. O Tio Napoleão, aliviado, nos agradeceu com um sorriso largo, e eu, com o coração cheio de alegria, me despedi da fazenda, sabendo que tinha vivido uma aventura inesquecível.
Carlos Magno Mieres Amarilha IN: A Crônica do Dia. A VERDADE. Prelo, 2025.
Imagem/fonte: IN: do Facebook, https://www.facebook.com/autoantigo. Perfil: ‘carros antigos’, 13/04/25.





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