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Crônica - Macondo, por Raquel Naveira

Quinta-feira no Blog do Alex Fraga é dia de crônica da escritora e poeta sul-mato-grossense Raquel Naveira, com sua crônica intitulada Macondo.

MACONDO

Raquel Naveira


Ler Cem Anos de Solidão, do colombiano Gabriel Garcia Márquez (1927-2014), radicado na Cidade do México, Prêmio Nobel de Literatura em 1982, é sempre uma viagem profunda numa narrativa poderosa e complexa, cheia de fugas e interrupções. Exemplo maior do realismo mágico impregnado na literatura hispano-americana. O autor desentranha o maravilhoso das coisas que o rodeiam, misturando o real e o fantástico. Traz à tona elementos simbólicos, primitivos, que são as forças autênticas da terra. Conta a incrível história de uma família por sete gerações, os Buendía, uma estirpe que guarda anseios e dores de um povo oprimido, colonizado. Moram numa cidade mítica, Macondo, uma espécie de microcosmo, onde a fantasia coabita no dia-a-dia do povoado. Um lugar estranho, onde chove durante quatro anos seguidos. Fantasmas, névoas e memórias caminham pelas ruas e espiam das janelas. Borboletas amarelas rodeiam os brejos. A família é uma verdadeira “casa de loucos”, onde os filhos herdam cada vez mais a loucura dos pais. Os diálogos são escassos e a casa se enche de desconhecidos convivendo sob o mesmo teto. Os homens, de nomes “José Arcádio” são inventivos, impulsivos, visionários. Já os “Aurelianos” são introspectivos, com poderes sobrenaturais, capazes, por exemplo, de mover e quebrar objetos com o olhar. As mulheres, as “Úrsulas”, são espinhas dorsais da família e da cidade, incansáveis, matriarcas cheias de iniciativa, força e inteligência. Os acontecimentos e conflitos caminham como teias sociais, familiares, políticas e humanas.

Dizem que Gabriel Garcia Márquez, o Gabo, aos trinta e sete anos, fez uma viagem a Acapulco e voltou com o livro inteiro idealizado em sua cabeça e, principalmente, com o tom que daria à história, muito influenciado pela forma como sua avó, Tranquilina Iguarán, contava casos exóticos, absurdos e aterrorizantes. Despachou os originais para uma editora da Argentina e o livro explodiu em milhares de exemplares pelo mundo todo, traduzido em vários idiomas. A América exportava pela primeira vez para a Europa um livro que marcava a identidade da América Latina. América que até então era uma criação premeditada da história europeia.

Gabo afirmava que tudo que escrevia tinha como base a realidade. Em seu discurso na Fundação Nobel, lembrou-se de Antônio Pigafetta (1480-1531), um navegante florentino que acompanhou Magalhães na primeira viagem ao redor do mundo e que, ao passar pela América, escreveu uma crônica que parecia uma aventura da imaginação. Narrou que havia visto porcos com umbigo no lombo, pássaros sem patas, nativos que enlouqueciam olhando-se no espelho. Gabo citou também o explorador espanhol, Álvar Núñez Cabeza de Vaca (1490-1559), que saiu à procura da fonte da Eterna Juventude, numa expedição lunática que chegou ao norte do México. Mais tarde, esse aventureiro verá a imensidão do Pantanal, ao qual deu o nome de “Mar de Xaraés”. Comprova-se assim que o realismo mágico tem raízes no imaginário barroco, medieval, remontando até às proezas de um herói da Antiguidade Clássica como Ulisses, relatadas na Odisseia, de Homero (928 a. C- 898 a. C.).

Bela Vista, cidade na fronteira do Brasil e do Paraguai, cortada pelo rio Apa, foi a minha Macondo. Era lá que eu passava as férias, no sítio de meus tios-avós, Pila e Anita. Ele vestido de bombachas e faixa colorida na cintura. Ela com cara de índia, cabelos brancos trançados, sorvendo o mate na cuia. Tio Pila contava com minúcias como se desenrolara a Guerra do Paraguai naquelas lonjuras: a perseguição dos paraguaios à coluna do Guia Lopes, na célebre Retirada da Laguna, os soldados dizimados pela peste, chafurdando no lamaçal. Os “enterros”, tesouros de ouro e prata escondidos em baús, por baixo dos pisos e próximos às árvores frondosas. Um piano enterrado, que pertencera a Madame Lynch, amante de Solano Lopes, tocava sozinho misteriosamente à noite. Histórias de um bandoleiro perigoso, o Silvino Jacques, gaúcho sul-mato-grossense, afilhado de Getúlio Vargas, homem violento a serviço de latifundiários. Quando nos reuníamos na varanda, tio Pila apontava a luz cintilante e azulada do fogo-fátuo, o boitatá dos pântanos e cemitérios, que matava os índios. Evocava as figuras do caipora de cabelos vermelhos e pés virados para trás, da mula sem cabeça e de sacis pequenos e variados que faziam as crianças se perderem no mato. Dormíamos sob a chama do lampião, que atraía mariposas. Os olhos arregalados de medos e angústias sem explicação. Mas era bom, sentíamos que estávamos mergulhados num universo cruel, onde também havia amor, poder e solidão. Intuíamos, afinal, que a vida é mais tenaz do que a morte.

Os escritores são inventores de fábulas, que acreditam na criação da utopia. Deliram. Escreveu Gabo: “Uma nova e arrasadora utopia de vida, onde ninguém possa decidir pelos outros até mesmo a forma de morrer, onde de verdade seja certo o amor e seja possível a felicidade.” Rende então homenagem à Poesia, pois só a poesia resgata a América nas alturas de Macchu Picchu, destilando a tristeza milenar dos sonhos sem saída.

Os espíritos esquivos da poesia rondam a Macondo de Gabriel Garcia Márquez e a minha distante Bela Vista.

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