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Crônica - A arte de perder, por Lucilene Machado

Sábado no Blog do Alex Fraga é dia de textos da escritora, poeta, cronista Lucilene Machado, com sua crônica intitulada "A arte de perder".


A ARTE DE PERDER

Queria lhe dizer que li o poema da Elizabeth Bishop “A arte de perder” e que perder não é nenhum mistério. As coisas mais significativas contêm em si esse risco determinante. Perde-se pessoas, perde-se objeto, perde-se lugares, perde-se a chave para muitas coisas, mas isso não muda nada, a vida segue impassível. Confesso que foi impossível não refletir sobre as minhas perdas. As grandes, as pequenas, as que se perdem gradativamente, as que me são tiradas a solavancos e, muitas vezes me derrubam; as perdas que estão tatuadas em minha pele e todo mundo vê, as que estão ocultas e doem paulatinamente e as que estão escritas na parede da memória e amanhecem comigo, diariamente, do mesmo modo como foram concebidas. Bishop diz que perdeu duas cidades lindas e um império que era seu. Perdeu dois rios e mais um continente, mas não é nada sério. Não é mesmo! No entanto, sofri com suas perdas, porque são parecidas com as minhas, com as que compõem a memória da minha vida partida. Não perdi um rio, mas perdi, por exemplo, minha alma, como um remo que é derrubado em águas profundas. Perdi o rumo de um destino que era feliz. Perdi o sonho. Perdi a vontade. Perdi amizades. Perdi o amor – várias vezes. Perdi tudo – algumas vezes. Mas, que importa perder tudo se tudo é nada? Perdi raios de sol, perdi nuvens que se foram com o vento, perdi brisas, luas, estações inteiras! Perdi o rosto que era meu, perdi o olhar, perdi a lucidez, o silêncio, a timidez e fiquei entupida de nada. Perdi a geração a qual pertenço e fiquei perdida no tempo e espaço alheios. Perdi a fé, a religião, a confissão de uma vida que não serve, perdi a certeza, a esperança... perdi o verbo, o adjetivo, frases literárias absolutamente humanas; perdi a percepção para diferenciar o que realmente quero e o que estou tentando querer. Fui ficando tão esvaziada que quando você chegou, eu não soube o que fazer com a sua presença. Tampouco fugi porque não suportaria a vergonha de me acovardar. Assisti incógnita à partida da minha resistência. Você estava ali, tão completamente ali, que eu soube, imediatamente, que no momento seguinte você iria me tocar. Foi tão imediato, tão agora, tão já, não havia tempo para estratégias. Intuitivamente, tínhamos consciência que deveríamos fazer um movimento perfeito, tanto na chegada quanto na despedida, para não provocar nenhuma dor, nenhuma ferida, nenhum gosto amargo na boca. Fizemos tudo, acertadamente, como se conhecêssemos os manuais de aproximação e afastamento. Talvez eu tenha demonstrado um pouco de ansiedade, demonstrado, ainda que indiretamente, minha falta de jeito, de prática e que o prazer da aventura me era levemente desconfortante. Demonstramos grandes habilidades na arte de perder e, inclusive, sabemos que essa saudade inexplicável, qualquer dia desses, vamos perder. Apesar da demonstração de nossa competência, nem sempre é fácil manejar essa arte. Ela passa pelos consultórios psicanalíticos ou, pela literatura. Há também outras opções menos indicadas como o álcool, as drogas compradas em farmácias ou mesmo os tóxicos encontrados nos becos urbanos. Eu fico com a literatura e tento transformar em arte essa coisa nenhuma que me empurra para o sol, para o mar, para uma nova estrada, um novo texto e, de repente, no meio de uma frase ou de um movimento, me surpreendo pensando algo como: perder é só um verbo, intransitivo.


Lucilene Machado

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