Segunda-feira no Blog do Alex Fraga é dia de crônica com a professora, escritora e poeta Tânia Souza, com Voo pela Liberdade.
Voo pela liberdade
É ele, eu sei que é... e agora? Ay Dios, que faço? Que faço... Os soluços de Uiara eram sussurros, mal ouvidos por ela mesma, temia e tremia ser vista, sabia que ele viria um dia, mas não assim. A vida inteira preparara-se em seus pesadelos para este encontro, mas nunca, nem nos piores momentos de medo, se imaginara assim, sozinha e despreparada. Mas como pode alguém estar preparado para a visita da dor?
A risada sinistra, o cheiro fétido e as mãos imundas rasgavam o pão sobre a mesa, bebiam o café e olhavam ao redor, sempre à procura de algo para tomar.
Uiara escondera-se no pequeno armário, dentro da despensa, quando escutara os tiros e a porta sendo derrubada com força, fora para o único lugar onde podia se esconder. Rezava, do seu jeito, a Deus, aos santos, aos pais que já haviam partido e a deixado tão só. Onde estaria Ramón? Onde estaria o homem que a tinha como filha, estaria morto, ferido? Jamais deixaria que aquele monstro chegasse até ela. Soluçava em silêncio, tinha medo de respirar, a pele estava pegajosa, o suor escorrendo debaixo da chita, o coração batendo tanto parecia um tambor avisando sobre seu medo. Ramón jurara que nunca a deixaria só, e tinha prometido aos pais, no leito de morte, dar a vida por ela, será que a promessa havia sido cumprida? Uiara sentia-se sozinha, rezava por Ramón, seu único amigo.
Agora ele mordia o pão, cheirava e rasgava a linguiça pendurada, suspirando de prazer, tomando a água límpida da jarra, mastigando furiosamente o alimento encontrado. De repente, ele parou. Dios mio, Uiara tremeu e tentou não respirar, viu quando ele virou lentamente o corpo e passou os olhos pela porta entreaberta da despensa, o monstro tinha instintos apurados, diziam no povoado que tinha parte com o Coisa Ruim, a menina benzeu-se, fazendo o sinal da cruz, encolhendo-se mais no fundo do armário, sentia o cheiro das coisas guardadas, do sabão de graxa, do eucalipto que usava para perfumar as roupas limpas, mas sentia também o cheiro de maldade que invadira a sua cozinha. Cheiro que agora se aproximava lentamente de onde ela estava.
Quando ele abriu a porta, o sorriso maldoso, os olhos procurando por ela, chamando, dizendo seu nome, gargalhando, uma força desconhecida moveu Uiara, não seria tomada por aquele homem, lembrou-se da irmã, o corpo marcado, os olhos enlouquecidos, coberta de mordidas e queimaduras, a insanidade foi uma benção diante do que passara, e desde então Uiara fugira da vingança, da insana vingança daquele que chamavam de El Cavajú Pÿta, ou Cavalo Vermelho, louco, insano, mau. Sujo de corpo e alma.
Ele sabia que ela estava ali, sorria e chegava feito uma onça, pressentindo o cheiro de medo, rindo de sua desgraça, antecipando de forma descuidada o prazer da matança. Um espeto de ferro, esquecido em um cantinho encheu as mãos da moça, e quando os olhos claros, o cabelo de fogo e os dentes podres estavam tão próximos, ela abriu a porta do armário de repente, investindo nele, furando o canto do peito, gritando toda dor e medo que guardava desde menina, mas El Cavajú era rústico, bruto, empurrou a garota, e tocou o espeto, feroz, gritando, chega de fugir guria, vai pagar, finalmente a tua raça vai sumir desse chão de inferno, e cuspia de lado, arrancando o espeto, levantando meio mole do canto onde havia caído. Não, não, estremecendo, Uiara caminhava de costas em direção a porta, quando percebeu o sangue manchando a camisa suja e o homem ruivo levantando-se, virou-se e correu, correu gritando.
Na porteira, o corpo de Ramón a esperava, coberto sangue e terra, caído no chão que jurara proteger. Uiara corria, corria, berrava desesperada por socorro, sem ver para onde ir, deixando a pele ferir-se no mato que crescia, os joelhos morenos esfolados.
Ouvia a risada, a gargalhada empestando o ar, cada vez mais perto, corria e corria, o coração explodindo no peito. O bandido que a seguia era um homem alto, ruivo, barbudo, havia recebido o apelido devido à crueldade com que atacava as pessoas, como um verdadeiro demônio.
Uiara correu tanto, e de repente parou. A sua frente, a terra abria-se em uma cratera, estava em frente ao terrível Buraco das Araras, voltou-se trêmula, tentando dar a volta, mas El Cavajú já estava perto, sorrindo, os dentes apodrecidos, os cabelos empastados, a pele encardida, chica, chica, não tem pra onde ir... Uiara olhou, viu o que a esperava, os olhos de cobiça, de fera, em seus joelhos, a crueldade escorrendo viscosa dos olhos azuis, e atrás, cheiro de morte antiga, era no Buraco das Araras que muitos mortos foram jogados, ladrões, bandoleiros, homens bons atraiçoados, todos igualando-se no escuro das rochas, apodrecendo ate desaparecem no tempo.
Uiara sonhou asas e fez seu ultimo vôo. Reviu os pais, o roçado, o gado campeado, a irmã trançando seus cabelos, os braços de Ramón carregando-a quando ainda menina, e voou pela sua liberdade, vencia assim o monstro que tentara destruir a beleza de seus dias, mas que jamais a teria.
Sentia crescerem-lhe longas, coloridas e sinuosas asas.
Uiara livre, voava.
Do abismo de mistérios e outras eras, ergueu-se do Buraco das Aras uma revoada que clamava por justiça.
O bando trouxe, por alguns instantes, noite ao dia, o homem correu, correu, mas não adiantou. Asas da vingança envolveram o homem, engolido pelas sombras da própria alma, El Cavajú desaparecia.
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