
Quinta-feira no Blog do Alex Fraga é dia de crônica com a poeta e escritora de Campo Grande (MS), Raquel Naveira, com Urutau
URUTAU
Raquel Naveira
Era quase hora do crepúsculo. Andando pelo corredor lateral de minha casa, observei sobre um pedaço de toco algo estranho: a madeira ganhara um formato mais alongado. Ao chegar perto, levei um susto: era um mocho, mestre em camuflagem, com sua plumagem marrom e preta, estático, imitando um galho. “Um urutau”, pensei, paralisada. Ele, de repente, abriu os olhos amarelos como lâmpadas e me encarou. Fechou-os novamente, deixando apenas uma nesga por onde continuava sondando meus movimentos, os batimentos de meu coração. Escancarou então a boca enorme, rosada, de veias irrigadas e começou a entoar um canto melancólico que parecia dizer: “_ Foi, foi, foi...” Foi e não é mais, é passado, rastro, vestígio, lembrança. Era tudo o que eu sonhava e se foi e se perdeu. Como essa assombração veio parar aqui? Terá fugido das queimadas do Pantanal, onde fogos subterrâneos brotam do solo e as labaredas são levadas pelo vento forte e seco? Terá vindo no meio do calor e da fumaça, impelido pelo desequilíbrio de todo um ecossistema? Terá atravessado os rios Paraguai e Taquari na angústia da desertificação? Como chegou aqui, no meu estreito quintal?
Reconheci logo esse ser estranho. No livro Vida de Erval, o folclorista Hélio Serejo descreve as árvores nativas de erva-mate, exuberantes, espalhadas pela Serra de Maracaju até o rio Apa; a fundação da Companhia Mate Laranjeira pelos irmãos Murtinho; os conflitos de homens escravizados pela extração da planta, mergulhados num “inferno verde”. Os ervais estendiam-se como um manto, uma muralha movediça, onde cada folha era a vida de um homem e todas juntas contavam a história do sul de Mato Grosso, calcado em sangue e clorofila. Nas noites quentes de verão que torrava a terra, o urutau, conhecido como “mãe-da-lua”, pousava sobre as erveiras arredondadas. O seu arrulho assustador incitava ao trabalho e ao sacrifício. O patrão tinha um chicote de lagarto papo-amarelo que arrebentava os órgãos e os sonhos.
Se a noite é de chuva, de nuvens pesadas, lá está ele, o urutau, anunciando tempestade. Memória da Chuva é o livro de estreia da escritora campo-grandense Thaïs Martins. Trata-se, no entanto, de uma obra madura, de contos e registros fantásticos´. A autora pertence a uma das famílias artísticas e históricas mais importantes de nosso Estado: os Barbosa Martins. Neta de Vespasiano, líder divisionista; filha do governador e intelectual Wilson; sobrinha da inquieta e intrigante Lydia Baïs, precursora das artes plásticas e do surrealismo. O personagem de um dos contos que ela criou é o Coronel Urutau, velho patriarca macambúzio, com “pensamentos de ocaso, pungentes como o sol de fogo a incendiar o cerrado”. Ele confessa: “_ Sinto que sou ave fantasma, corujante, feia, disfarçada de galho seco. Pio de mau agouro? Bicho sem-vergonha, cantilena marota.” Que importava ao coronel os recados funestos de seu pássaro totêmico? Seu pai morreu, sua mãe, sua noiva, que importava? Ele tinha um “mar de nelores brancos”. Pena que gente, principalmente filhos, são mais complicados do que gado. Amargo e irônico esse Coronel Urutau.
Também nas veredas do grande sertão mineiro, deitados sobre os leques das palmeiras de buriti, Riobaldo, Diadorim e seu bando de jagunços ouviram calados o urutau. Guimarães Rosa relata a cena: “Todo o mundo dormindo. Só cachorro mateiro, que sai debaixo dos silêncios e um ô-ô-ô do urutau, muito triste e muito alto.”
Vou me afastando de costas, de mansinho, de volta à sala já escura. A guarda florestal veio rápida, com um cobertor e um puçá. Levaram-no comentando: “_ É mesmo um urutau. E dos grandes.” Que espanto!
Bacias de rios drenadas, nascentes em cinzas, avatares luniterrestres apanhados nas redes. Um aperto, uma dor tão funda me trouxe a visita desse urutau.
(Texto a ser publicado exclusivamente pela revista Conhece-te, do editor Marcelo Pereira Rodrigues)
Fiquei quase sem fôlego, diante dessa intensa e bela prosa poética. Destaque para os diálogos literários. Parabéns de Isaac Ramos.
Belo texto! Raquel arrasa!
❤️❤️❤️❤️❤️👏👏👏👏
Parabéns Raquel, excelente texto.
Maria de Lourdes
Gostei muito da Crônica Urutau, de Raquel Naveira. Fiquei faceira com a citação. Quem tiver interesse em receber "Memórias da Chuva," meu livro, envie o endereço.