Sábado no Blog do Alex Fraga é dia de crônica com o médico clínico geral, acupunturista e escritor de Campo Grande (MS), João Francisco Santos da Silva, com "Tempo Rei".
Tempo Rei
Naqueles dias, Marçal ainda não respeitava o tempo. Melhor dito, simplesmente não lhe dava atenção. Perambulava pelas ruas da cidade como se não houvesse amanhã. Ávido por conhecer o lugar, costumava percorrer a rua Quinze de ponta a ponta. Ele precisava vivenciar a cultura e praticar a língua local. Desse conhecimento dependia a realização de um projeto maior, aprender português e concluir a faculdade. Porém, muitas vezes desviava o foco e o projeto maior ficava de lado. Em suas andanças pelo centro da cidade estava atento as oportunidades que lhe permitissem interagir como nativos da cidade, em específico com as jovens curitibanas.
Aos dezoito anos, Marçal tinha uma autoestima que superava em muito a sua real capacidade. Meio sem noção, estava certo de possuir o que não possuía. No seu caso, quando se olhava no espelho via nitidamente um conquistador irresistível para qualquer mulher de bom gosto. Com cabelos pretos e lisos, penteados com gel, a manga comprida da camisa milimetricamente dobrada, e óculos escuros, ele fazia, ou pensava fazer, o tipo amante latino.
Apesar da autoimagem meio distorcida, o rapaz tinha algumas virtudes. Quase sempre estava sorridente e cantarolando uma canção. Não variava muito o repertório de uma única música e que não ia além do refrão: “Tempo rei, ó, tempo rei, ó, tempo rei...”. Eis aí outra de suas virtudes, tinha bom gosto musical e gostava de Gil. Paraguaio, veio para o Brasil para cursar a faculdade. O problema de muitos alunos estrangeiros de intercâmbio era adaptar-se à cultura brasileira e aprender o idioma. No início não foi fácil, e até saber o suficiente de português para se virar na faculdade, reprovou em algumas disciplinas. Porém, jovem, otimista e persistente, insistiu e foi até o fim. Inclusive fez uma pós-graduação antes de voltar para sua terra natal.
Marçal tinha o hábito de ser um pouco repetitivo. Além de cantarolar incansavelmente os mesmos versos da música, não poupava os colegas de ouvir-lhe contar mil vezes sobre suas quase conquistas amorosas. Um dia ele chegou muito empolgado na faculdade. Na véspera tinha ido ver os preços de passagem aérea para Assunção. E foi na loja da Varig que ele avistou sua primeira paixão brasileira. Mulher linda e perfeita segundo ele. Ninguém nunca conheceu a tal mulher que encantou o paraguaio. Porém, conhecendo as suas preferências, seria uma loira, com cabelos muito bem penteados e cílios postiços. Devia estar sempre maquiada, preferir batons e esmaltes de cores vivas e calçar salto alto o dia inteiro. Assim como ainda não era fluente em
português, também era apenas um aprendiz de sedutor, com muitas coisas ainda por aprender. Insistente, mas com pouca prática, durante dois meses ele ia diariamente à loja da Varig para ver a sua musa curitibana. Confirmava os preços e horários de voos para Assunção. Falava algumas baboseiras, umas piadas de duplo sentido e depois ia embora. Nunca comprou as passagens aéreas. Só tinha dinheiro para ir de ônibus para Assunção uma vez por ano em suas férias. Não seduziu a vendedora, ficou só na paixão platônica. Mas, rendeu tanta conversa que passados mais de quarenta anos, tanto a moça da Varig, quanto a música de Gil não saem da lembrança dos antigos colegas de faculdade.
Por falar em tempo e em lembrança. Já faz anos que a Varig fechou. Provavelmente a vendedora, musa do paraguaio virou avó e quem sabe se libertou do salto alto. Marçal deixou de se reconhecer no espelho, careca e barrigudo, ficou velho. Agora precisa de medicamentos para próstata e para hipertensão. E como ainda está na ativa, e acha que continua sendo um amante latino, vez por outra, se engana com uma pílula azul que lhe dá a sensação de ter um resto de virilidade. Como nunca foi muito criativo, continuou sendo atraído pelo mesmo tipo físico de mulher. Porém, quarenta anos depois, fez pequenas atualizações no modelo que agora vem com silicone e mais músculos produzidos a ferro e hormônios exógenos. Ainda gosta de cantarolar o hit do último verão. E por falar em música, esses dias, por coincidência ou não, Marçal ouviu com interesse, e do começo ao fim a música de Gil: “Tempo rei, ó, tempo rei, ó, tempo rei. Transformai as velhas formas do viver. Ensinai-me, ó, pai, o que eu ainda não sei...”.
Tudo é questão de tempo. Coincidências não existem. Aquela música de Gil que Marçal cantarolava pelos corredores continua sendo linda e atemporal. Contudo, agora Marçal tem uma outra compreensão dela. Talvez o verbo não seja compreender e sim sentir. Todos os dias ele sente essa soberania do tempo que lhe obriga a ficar velho. Que lhe diferencia cada vez mais daquele jovem que andava pela rua Quinze, sempre em busca da próxima conquista. E se assusta a cada nova percepção de em quem se transformou. E o pior, como dizia Cazuza, “o tempo não para”. Se está difícil olhar para trás, é totalmente contraindicado vislumbrar o futuro quando já se está velho. Então, Marçal pensa que é melhor se exilar das referências temporais. Paradoxalmente lhe sobrará mais tempo para olhar para dentro de si mesmo e tentar se reconhecer. E lá no seu interior, onde não há espaço para temporalidades, talvez ele consiga fugir desse Tempo Rei ditador e implacável.
Muito bom mesmo.
Lima de Souza - Campo Grande MS
Excelente!
Denise Lima
São José dos Campos - SP
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