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Crônica - Sobre peixinhos dourados, sol e cal, por Tânia Souza

Foto do escritor: Alex FragaAlex Fraga


Terça-feira no Blog do Alex Fraga é dia de crônica da professora, poeta e escritora de Campo Grande (MS), por Tânia Souza, com "Sobre peixinhos dourados, sol e cal".


Sobre peixinhos dourados, sol e cal; ou de como Gabriel Garcia Marques me ensinou amar literatura.


Depois de ler por cem anos, de solidão sou tocada. Fecho as janelas. Todo fim tem por retorno uma viagem. Na paisagem que se redesenha ao redor, percebo que acabei de chegar. Tudo que vejo, conheço e vivo some no momento-repente tão novo e claro. E apesar das sombras, sinto o sol ardendo em mim.

Prossigo em novo caminho, a mata fechada fere os espaços, passos e lacunas sobrevoam-me, mas não posso me deter. Livro-me dos galhos e do verde e, finalmente estou e sou em um pequeno povoado. Meus olhos se enchem de descobertas: um menino brincando com um peixinho dourado me reflete. Decido continuar, e apesar das sombras, sinto um sol ardendo em mim.

Passos ávidos em sendas secretas, quando uma criança de olhos grandes e assustados não conseguiu evitar que eu a visse comer a cal arrancado em febre das paredes de outrora. Cal, estranheza tão familiar... Seus dentes devoravam e eu podia ouvir o ruidoso mastigar junto a tão inocentes olhos. Fome. De quê? A memória tenta enganar-me... e ainda me perco. Tenho fome também.

E apesar das sombras, o sol.

Sigo descobrindo em cada canto um reconhecer, enlevo e medo. E os sons aumentam em fúrias, que barulho-canção é este? E ao longe vejo chegando, pressa e ânsia; urgente e garboso militar, escoltas de soldados. Uma anciã melancólica o fita, onde estava que não a via? Esteve sempre comigo tão plena de histórias e dores? Os olhos vagos, vazios, me lembram alguém... Eu queria conhecer o gelo.

Quem? Não sei, não importa, seria impossível. Ou seria, neste descaminhos onde tudo é tão novo, a espera de ser nomeado? Parada diante de uma bela casa, sem sombras, apenas sol.

O cenário transmuta-se, e mais uma vez, me trans-formo, ao toque de estranhos e amigos sons. Pobre de mim, quem sou? Sei apenas que o vento me arrasta, giro cada vez mais rápido e já não posso nem quero fugir.

— Macondo!— Sussurram-me os ventos do tempo.

— Macondo...

Úrsulas, Petra, Pilar, Fernada e Sofía, alguma Carmelita, outra Renata, e Amarantas e Rebecas e Remédios ... estas almas tão antigas, tão meninas que sorriem, provocam e choram melancolias, femininas ferinas entranhadas em letras de sangue. Márquez me arrasta, em minh'alma gravado. Já não sei quem sou, quem fui. De(s)importa, tudo o que quero é sentar-me à sombra do velho castanheiro e de velhas prosas do uma antiga criatura me fartar.

 O vento agora aumenta, se encolhe e se expande e sussurra. Em um redemoinho de flores e borboletas eles se dissolvem.

Mas ainda há Melquíades, que  me estende a mão e também sou levada, para quais caminhos não sei, todavia sinto a menina mastigando furiosamente a cal dentro de mim e um ciclo se fechando, lentamente, no meu próprio ciclo a se encerrar.

E apesar das sombras, o sol.

 
 
 

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