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Crônica - Rubens-Artaud, por Raquel Naveira

  • Foto do escritor: Alex Fraga
    Alex Fraga
  • 18 de ago. de 2022
  • 4 min de leitura

Quinta-feira no Blog do Alex Fraga é dia de crônica da escritora e poeta sul-mato-grossense Raquel Naveira, com seu texto intitulado Rubens-Artaud.


RUBENS-ARTAUD

Raquel Naveira


Antonin Artaud poderia ser considerado hoje um filósofo, um mestre gnóstico, um performático, mas na França de cinquenta anos atrás, seu pouco tradicional modo de viver, sua rejeição dos valores convencionais, principalmente no teatro, levaram-no ao internamento para doentes mentais, durante nove anos.

Estudar a obra de Artaud é sempre um gesto de coragem e ousadia. Penetra-se numa região perigosa, de sombra e de magia. É como equilibrar-se numa corda bamba entre realidade e fantasia, lucidez e loucura. A qualquer momento há o risco de se cair no abismo, sem rede de segurança.

A leitura do livro O Teatro e Seu Duplo, de Artaud, é fascinante: o teatro comparado à peste, colocado no plano de uma verdadeira epidemia que mata, que transtorna, que provoca no espírito do povo as mais misteriosas alterações, que impõe atitudes heróicas e difíceis; a teorização de um teatro cruel, que só é válido se tiver uma ligação com a realidade e o perigo, se for um exorcismo de maus humores; o ator como atleta afetivo que controla seu corpo, seu organismo e se esfola em gritos. Ideias que chocam, surpreendem, levam o leitor a um transe poético.


*


Rubens Corrêa, o ator sul-mato-grossense falecido em 1996, encarnou o controvertido Artaud no palco, num monólogo inesquecível. O espetáculo Artaud era uma colagem do pensamento de Artaud feita por Rubens Corrêa e Ivan de Albuquerque. Oscilava entre momentos tensos, líricos e de humor, indo do discurso de Artaud sobre a loucura até a sensível e comovente defesa de Van Gogh. Um dos pontos altos da peça era a gravação da voz do próprio Artaud, feita a partir de um programa radiofônico escrito, produzido e dirigido por ele, em 1948, na França. Eram gritos selvagens, lancinantes, inarticulados- explosão de profunda angústia para além das palavras, que faziam gelar o sangue. Um documento inédito no Brasil que, por felicidade do destino, parou nas mãos de Rubens Corrêa.

No palco, Rubens encarnava Artaud, era possuído pela personagem. O texto todo narrado em primeira pessoa. Começava com Artaud falando sobre o teatro como exercício de um ato terrível e perigoso, capaz de curar e dominar a vida. Depois misturava a biografia com pensamentos do artista. Artaud aparecia como um homem sacrificado, uma torre fulminada por um raio, um Feiticeiro. O público sentia compaixão por esse escritor e poeta que

viveu confinado em manicômios. Louco e, ao mesmo tempo, lúcido, capaz de dizer as verdades mais insuportáveis. Artaud era uma ameaça e Rubens Corrêa dava forma a essa ameaça que era Artaud.

O monólogo era entremeado por depoimentos gravados: o do ator e diretor Jean Louis Barrault dizendo que Artaud dava a impressão de ter um motor de avião instalado na carroceria de um Citroën, nos momentos de calma era um rei, era de uma inteligência profética, alegre e brincalhão; o do médico, Dr. Ferdière, falando sobre o tratamento mais humano que deu a seu especial paciente; o do poeta Henri Thomas contando que Artaud sempre dependeu de meios exteriores para sobreviver e que era muito doente, um homem que não dava valor a nada. Artaud foi abandonado por Artaud. Artaud assumiu a personagem de um momo, de um idiota sagrado, desertou de si mesmo.

O monólogo prosseguia com uma voz feminina ao fundo, que seria a da escritora Anaïs Nin, que sentiu por ele estranha atração feita ao mesmo tempo de admiração e repulsa física. Ele era louco e ela amava sua loucura. Sabia que ele desejava ser reconduzido à vida pelo amor de uma mulher, mas ficava amedrontada diante de seus lábios escuros, que a repugnavam.

Artaud, no palco, ouvindo Anaïs, contorcia-se de dor. Ela seria capaz de lhe dar tudo o que lhe faltava, mas ele sentia o seu afastamento, a impossibilidade de viver completamente aquele amor irrealizável.

O monólogo chegava ao fim com Rubens-Artaud exausto, suplicando carinho e compreensão, mergulhando no seu destino de quem viveu só para sofrer.

Rubens Corrêa e Ivan de Albuquerque dedicaram o espetáculo à psiquiatra Nise da Silveira, criadora do “Museu de Imagens do Inconsciente”. Nise escreveu um artigo intitulado “Antonin Artaud: um homem em busca de seu mito.” Nesse artigo, ela afirma que é impossível rotular a doença de Artaud. Era uma terrível “doença do espírito”, de alguém que vivia na constante busca de seu ser intelectual. Antes dele, ninguém conseguiu exprimir por meio da palavra, com tanta força, essas dilacerantes vivências internas. Artaud aproximou-se do surrealismo, penetrou o inconsciente, o avesso da face lógica, aspirando a uma revolução interior que “curasse a vida”.

A doutora Nise analisou também os escritos de Artaud sobre o México, seu fascínio pelo sol, pela história do imperador Montezuma e da conquista do México pelos espanhóis.

Assisti ao espetáculo Artaud, protagonizado por Rubens Corrêa, na cidade de Aquidauana, no palco do CEUA (Centro Universitário de Aquidauana), no dia 04 de dezembro de 1986. Foi uma experiência sobrenatural para mim, entrei em estado de catarse, em regiões misteriosas dos

que vivem em “estados perigosos do ser”. Surgiu o poema “Rubens-Artaud”:


Rubens Corrêa,

O ator,

Encarnava Artaud,

Era ele e seu duplo

Assistindo-se a si mesmo.


Rubens penetrava no domínio da dor,

Da sombra,

Do nada,

Experimentava o vazio

Da alma de Artaud.


Gemia,

Contorcia-se,

Explodia de angústia,

O sangue gelava em suas veias

A cada grito de horror.


Sabia que o ser tem estados inumeráveis,

Perigosos

E que o misticismo do poeta

Não era delírio,

Era poesia e fulgor.


E os olhos de Rubens?

Negros de sofrimento,

Esbugalhados,

Cresciam nas órbitas

Como se saíssem de cavernas

E, ao mesmo tempo,

Azuis de langor

Como os de Artaud.


Na boca de Rubens

Havia sede de beijos

Que arrastaria para a morte e o torpor,

O gosto de uma mulher

Que perseguia Artaud.


Rubens amava o sol,

A terra vermelha de Aquidauana,

As montanhas,

Por isso compreendia como Artaud amava o México,

O tesouro do imperador.


Rubens desenhava no ar girassóis,

Molhos de feno,

Tempestades

Como se fosse um pintor,

Para ele Van Gogh era gênio

Suicidado

Como Artaud.


Em seu monólogo

Ficava possuído,

Rodeado de corvos,

Sufocado por espíritos;

Era Rubens que amedrontava

Ou a lucidez de Artaud?


Quantas verdades insuportáveis!

Quanto valor na loucura!

Rubens dava forma à ameaça

Que era Artaud.


Fingidor,

Rubens foi o ator

Que melhor representou Artaud.


*


Verdade. O próprio Rubens declarou para o jornal “O Globo”, que tivera um sonho na última noite de ensaio do monólogo Artaud:

_ Eu estava no espaço teatral, vestido como Artaud, luzes, música de Bali (como vai ser no espetáculo), sem público. De repente, me vejo representando e me vejo também assistindo. Consegui em sonho o que Artaud dizia: ‘Eu assisto Antonin Artaud, eu represento Antonin Artaud.”

 
 
 

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