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Foto do escritorAlex Fraga

Crônica/Poesia - Vestidos, por Raquel Naveira



VESTIDOS

Raquel Naveira


O escritor e jornalista Carlos Herculano Lopes, da Academia Mineira de Letras, tem um romance intitulado O Vestido inspirado no poema “Caso do Vestido”, de Carlos Drummond de Andrade. O poema é um longo monólogo na voz de uma mulher sofrida, que conta às filhas o significado de um vestido de renda pendurado num prego: a traição do marido, a superação, a dor, a humilhação, a espera, a resistência, a compreensão, a dignidade, o perdão, o sentido de família, os valores patriarcais. Um trecho do poema:

Nossa mãe, o que é aquele

Vestido, naquele prego?

Minhas filhas, é o vestido

De uma dona que passou.

Passou quando nossa mãe?

Era nossa conhecida?

Minhas filhas, boca presa,

Vosso pai evém chegando.

Carlos Herculano revisitou o poema com sensibilidade e imaginação, realizando um trabalho com a linguagem, grande desafio. Não apagou as marcas do poeta, ao contrário, acrescentou outras significações, em meio ao refrão que ressoa como eco em toda narrativa. O romance é um fio denso, confessional, de mulher ferida, que provoca expectativas até o desfecho surpreendente e emocionante. Há ritmo, curiosidade, agilidade, contensão, opressão, suspiros e silêncios, cumplicidade entre mulheres que conhecem suas armas no jogo do amor: a sedução e a bondade. Há uma brecha, uma nova dimensão para o rompimento da clausura paterna, através da liberdade consciente e superior. Herculano amplia os espaços geográficos, dá nome aos personagens, multiplica fatos e situações dramáticas, cria uma história de lutas, cobiça, poder, vingança, crimes e paixões, num cenário rural, que lembra seus outros romances como A Dança dos Cabelos e Sombras de Julho.O vestido em Drummond é signo de sexualidade pecaminosa. No texto de Herculano, o vestido pode ser usado pelas duas mulheres rivais: a esposa e a amante. Tudo dependendo do momento e do desejo. Da troca de papéis no universo amoroso.

Meu avô dizia que as mulheres não deveriam usar calças compridas. Que as saias e os vestidos eram belos, elegantes, femininos. Que o vestido era a veste da mulher. Veste... uma palavra mística. As vestes são o símbolo exterior da atividade espiritual, a forma visível da essência interior.

Quando menina, li o livro que abriria para sempre as portas de minha imaginação, o Reinações de Narizinho, de Monteiro Lobato e me vesti com aquele

Vestido Maravilhoso que a costureira Dona Aranha preparara para Narizinho, com o auxílio da fada Miragem, com a agulha da Fantasia e a linha do Sonho. Trecho: “Era um vestido que não lembrava nenhum outro desses que aparecem nos figurinos. Feito de seda? Qual seda nada! Feito de cor- e cor do mar. Em vez de enfeites conhecidos-rendas, bordados, entremeios, fitas, vidrilhos, era enfeitado com peixinhos do mar.”

Diante dessa tontura de beleza, lembrei do fascínio dos vestidos de noiva e de um pequeno conto de Ana Miranda do poético livro Noturnos. Escreveu: “Seu vestido está pronto, meu amor, diz a velha, aponta um vestido branco, feito de tecido nacarado, com todas as suas regras básicas, um jogo de sonhos e virgindades, uma espiritualização do corpo, a fingir uma fragilidade para não assustar o noivo, a mencionar a pureza, a majestade, a exigir núpcias carinhosas, entre erotismo e religião”.

Lendo os poemas cheios de erotismo da poeta portuguesa Rosa Alice Branco, em seu livro Soletrar o Dia, fiquei impressionada com o número de vezes que encontrei a palavra “vestido” em seus versos: “O teu colar brilha sobre o vestido negro”; “Foi feliz o vestido estampado”, “Sentir teu corpo como não ter vestido”; “A letra entreabrindo como se fosse o meu vestido”. Além de verbos que remetem a “vestido”, como “vestir” e “despir”. “As palavras que nos vestem estão cansadas.”; “Dispo-me como se esperasse que eu diga tudo”.

Depois dessas leituras, escrevi:

Mulher,

Lembro-me do cenário:

O quarto antigo,

Os livros,

O perfume de sândalo,

O teu vestido estampado,

O alarido de pássaros nas folhas

Enquanto desapertava os laços

E voávamos em redor do tempo.


Mulher,

O porte do teu corpo era correto,

Teu rosto doce e calmo,

Tua pele de maçã

Sob o vestido

Que se entreabriria

Dizia tudo

Que me fora prometido.


Hoje, corroído de saudade,

Ardido de ciúme,

Amolecido de cansaço,

Restou-me apenas esse teu vestido,

Mulher.

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8 commentaires

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Invité
12 mai 2024
Noté 5 étoiles sur 5.

As palavras de Raquel e de outros artistas estampando lindamente tantos vestidos. Parabéns!

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Invité
09 mai 2024
Noté 5 étoiles sur 5.

Como sempre, nota MIL para você, Raquel! Amo tudo que você escreve! Já coloquei esse aqui também na sua pasta! Que Deus a abençoe sempre, e continue nos encantando com suas obras!

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Invité
06 mai 2024
Noté 5 étoiles sur 5.

Texto incrível! Profundo e delicado! Obrigada!

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Invité
02 mai 2024
Noté 5 étoiles sur 5.

Sensível texto de Raquel e belo poema. Ambos retratam uma época em extinção, pois a moda é tornar tudo neutro: falas, expressões, objetos...

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Invité
02 mai 2024
Noté 5 étoiles sur 5.

Raquel Naveira é fantástica. O Blog do Alex Fraga é referência cultural de MS. Parabéns!


Sueli Motta de Andrade - Três Lagoas MS

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