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Crônica - Plano B: o guia do labirinto, por João Francisco Santos da Silva

  • Foto do escritor: Alex Fraga
    Alex Fraga
  • 21 de set. de 2024
  • 4 min de leitura


Sábado no Blog do Alex Fraga é dia de Crônica com o médico clínico geral, acupunturista e escritor de Campo Grande (MS), João Francisco Santos da Silva, com "Plano B: o guia do labirinto"


21 de setembro é o Dia Nacional de Conscientização da Doença de Alzheimer.

Data para lembrar das pessoas queridas que estão se esquecendo, mas que precisam e merecem não ser esquecidas.



PLANO B: O GUIA DO LABIRINTO


Os dias passaram-se tristes e vazios. Sem noção do tempo transcorrido, poderia ter sido dez dias ou dois meses, só agora ele conseguira disposição e coragem para voltar à casa. Diferente da casa de sua infância, nos últimos tempos tornou-se bagunçada e solitária. Primeiro foi a mãe, e agora seguia o pai. Mesmo parecendo quase sem sentido, lhe era obrigatório retornar mais uma vez àquela casa. Lá estavam guardadas muitas de suas próprias memórias, e outras tantas das que faltavam de seu pai.

No quarto do pai, remexendo na gaveta da mesa de cabeceira, se deparou com uma caderneta vermelha. Ficou curioso com o título escrito a mão na capa: “Plano B: o guia do labirinto”. Naquele momento, a curiosidade suplantou transitoriamente sua tristeza. Riu consigo mesmo ao lembrar que seu pai sempre tinha um plano B para as situações imprevistas da vida. Então, respirou fundo e vorazmente foi lendo o pequeno guia elaborado pelo pai.

As páginas misturavam frases manuscritas, com recortes de jornais e fotos de pessoas, algumas conhecidas, outras não. Para um guia, num primeiro momento, parecia mais um quebra cabeça. No final da leitura, percebeu que, para seu pai, tinha servido apenas como gabarito de um jogo de memória nunca usado.

A caderneta, acomodada no fundo da gaveta, estava bem escondida. Escondê-la pode ter sido a derradeira negação de seu pai. Devia estar muito assustado ao perceber que entrava no labirinto. Homem criativo, detalhista e precavido, esse era o seu pai antes de perder-se dentro de si. Talvez para aguentar o tranco, mentiu para ele mesmo que possuía um plano B para sair de lá.

Os primeiros registros em sua caderneta são de 10 de outubro de 2009. Começavam assim: “Meu nome é João Mendes. Nasci em 2 de novembro de 1931. Fui contador autônomo por 46 anos. Há dez anos estou aposentado. Tenho apenas um filho. Ele se chama Pedro Mendes. Sou viúvo. Minha mulher morreu em 11 de março de 2007. Ela se chamava Beatriz. Somente três pessoas vêm aqui em casa me ver. Meu cunhado (irmão de minha mulher) ele se chama Mário Barbosa, meu filho e a funcionária que vem todos os dias cozinhar, lavar roupa e limpar a casa. Ela se chama Terezinha. Os três têm a chave de casa”. Mais adiante continuava assim: “Levanto da cama e pego os comprimidos que estão separados ao lado do copo d’água e tomo-os. O banheiro é a porta que fica ao lado dos guarda roupa. Devo deixar a porta do banheiro sempre aberta, para não ter perigo de ficar preso. Vou até o banheiro e sento no vaso. Depois puxo a descarga. Me limpo com papel higiênico que está ao lado do vaso. Primeiro lavo as mãos com sabonete. Depois lavo meu rosto. Escovo os dentes. Penteio o cabelo. Volto para o quarto. Na porta do lado esquerdo do guarda roupa é onde estão as roupas de ficar em casa (Aliás, não posso mais sair de casa. Mas se sair, na página 11 tem o meu endereço completo e os telefones de meu filho e do meu cunhado). Tiro o meu pijama e visto a calça e a camisa. Guardo o pijama no local em que estava a roupa de ficar em casa...”.

Ao longo de mais de vinte páginas o pai havia escrito toda a sua rotina, tudo que fazia, passo a passo, durante as 24 horas do dia. Parece que foi uma tarefa rápida e sem revisões posteriores. Deve ter sido muito difícil para ele imaginar que precisaria de lembretes de seu nome ou até mesmo da foto de seu único filho para reconhece-lo. A última data registrada na caderneta é a de 19 de novembro de 2009. Ele não tinha intenção de fazer um diário. Queria ter um roteiro para seguir, mas não o seguiu. Depois de feito, deixou de lado o seu Plano B. Provavelmente o guia foi perdido junto com todo o resto do que lhe pertencia. E no final de vida, quando mais precisou dele, já desconhecia a sua existência.

O pai bem que tentou. Mas o fio guia foi roto, lhe deixando perdido no labirinto. No final, roupas sujas, excrementos pelo quarto, remédios não tomados, agressividade com as pessoas próximas. Partiu, perdido e internado em uma casa de repouso. Não reconhecia mais ninguém, nem a ele mesmo. Morreu em 28 de setembro de 2014, quase cinco anos depois de haver entrado e percorrido solitariamente o labirinto.

Se para o contador autônomo o guia não lhe foi útil, para o filho serviu de fio condutor para reencontrar o pai numa fase na qual ele já vislumbrava a entrada do labirinto. O que mais angustiou o filho foi imaginar o quanto seu pai deve ter se debatido, esbarrando nas paredes e se desorientando cada vez mais lá dentro. Talvez, desespero parecido aquele experimentado durante um pesadelo recorrente no qual não se consegue sair dele durante uma noite inteira.

O labirinto é hermético. Segredo guardado a sete chaves. Nenhum dos que por lá se perderam voltaram para descrever o que sentiram, se sofreram ou se, em vão, pediram ajuda. Quem sabe haja uma porta secreta de saída. Se houver esta porta, ela fica do outro lado de lá. Ainda inacessível para os que estão do lado de cá.

 
 
 

2 Comments

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Guest
Sep 21, 2024
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Obrigada!

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Guest
Sep 21, 2024
Rated 5 out of 5 stars.

♥️💟❤️❤️❤️❤️❤️❤️❤️❤️

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