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Crônica - "Panambi", por Raquel Naveira

Foto do escritor: Alex FragaAlex Fraga

Quinta-feira, dia de crônica no Blog do Alex Fraga, o belo texto da poeta e escritora sul-mato-grossense Raquel Naveira, com "Panambi".

PANAMBI

Raquel Naveira


O casulo guarda um terno segredo: o da vida que se transforma. Um dia, sob o sol de primavera, ele explode no êxtase de uma borboleta.

São graciosas e ligeiras as borboletas. Um prodígio as suas asas, misto de flor e fímbrias. Os seus corpos, misto de lava e líquidos.

Na fazenda, quando íamos tomar banho no córrego, nos monturos de lama pisoteados pelos cascos dos cavalos, pousavam enxames de borboletas: o panapaná. Panapaná é o coletivo de borboleta. Uma nuvem interminável delas, geralmente amarelas, flamejantes. Sorvem os sais da lama do brejo, num desassossego próprio de seres que não se cansam. Formam uma onda, um caudal de pétalas, de espíritos viajantes. Esvoaçam como almas saídas de estranhas moradas.

Em Campo Grande, minha cidade ao sul de Mato Grosso, no Museu do Índio, há uma das maiores coleções de borboletas do mundo. Todas classificadas por seus nomes científicos, embalsamadas, asfixiadas nos armários, espetadas por invisíveis alfinetes. Das mais variadas cores, tamanhos e formatos: alaranjadas, púrpuras, azuis, grandes e pequenas, estateladas nos túmulos de vidro. Quando criança, eu ficava fascinada e desejava pegá-las entre os dedos e soprar-lhes um novo ar, um novo frêmito de vida. Imaginava vê-las voando pelas salas sombrias do museu até alcançarem o céu da liberdade.

Quando ia para o sítio de meus tios Anita e Pila, que ficava em Bela Vista, fronteira do Paraguai, ouvia as pessoas se comunicarem em guarani, essa língua nativa pré-colombiana, que se fala no centro da América do Sul. Ramona, paraguaia de longos cabelos pretos, presos na nuca, explicou-me:

_Panambi significa ‘borboleta’. Panambi moroty: borboleta branca; panambi ura: borboleta da noite; panambi verá: borboleta brilhante. Pegava um disquinho compacto e colocava na vitrola. Era a guarânia “Panambi Verá”:


Panambi che raperãme

reserva rejeroky

nde pepo Kuarahy

ã me tamora e añeñoty.


Ramona vibrava, o corpo embalado pelos som das harpas.

_Tudo é harmônico nessa música. É uma canção perfeita, belíssima, entende?

_ E o que querdizer a letra? Ela traduzia:

_ Que a borboleta brilhante, de asas douradas, doce e terna, convida a alma ao sossego. Que o seu nome é como mel silvestre na garganta. Que a mariposa passa pelo nosso caminho, bailando e, ao persegui-la, entramos num bosque cheio de espinhos. A alma se alegra em segui-la, mas as mãos sangram.

Eu então fechava os olhos e repetia entre lágrimas:_Panambi moroty, panambi ura, panambi verá.

Bor-bo-le-ta. Uma palavra que parece ter asas. Como diria Aurélio Buarque de Holanda Ferreira, um colecionador de palavras, “definir uma palavra é capturar uma borboleta no ar.”

 
 
 

2 Comments

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Walesca Cassunde
Walesca Cassunde
Mar 24, 2022

Raquel Naveira é sempre maravilhosa.

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Alex Fraga
Alex Fraga
Mar 24, 2022
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Sempre!

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