Quinta-feira no Blog do Alex Fraga é dia de crônica com a poeta e escritora de Campo Grande-MS, Raquel Naveira, com "O espelho bisotado: um diálogo de textos".

O ESPELHO BISOTADO: UM DIÁLOGO DE TEXTOS
Raquel Naveira
O contista, romancista, jornalista brasileiro e membro da Academia Brasileira de Letras, que possui uma vasta produção literária e com quem sempre estou em contato, Ignácio de Loyola Brandão, recebeu nossa crônica “Penteadeira”, que começa assim:
Restaurou a antiga penteadeira, com o espelho de cristal bisotado e a banqueta de couro, que ficava no quarto dela, a sua mãe. Muitas vezes a filha a viu frente ao espelho, que lhe parecia baço, coberto de pó. A mãe abria potes de cremes, passava unguentos, o rosto lambuzado de grumos. Que esperava encontrar naquelas geleias? Juventude eterna? Mucos verdes escorriam em sua pele. Havia frascos de perfume, meio abertos, violentos, exalando odores fortes em estranha alquimia. Quando o sol batia na penteadeira, quase na hora do crepúsculo, o torpor morno aquecia as essências e a filha tinha vontade de chorar. A mãe fenecia tristemente. Algo acontecera no passado dela que a tornara tão vulnerável. Não conseguia envelhecer com graça e se satisfazer com o florescimento da filha, ao contrário, corroía-se de ciúme e inveja.
Qual não foi minha surpresa, quando Ignácio publicou a seguinte crônica no Jornal O Estado de São Paulo, do dia 12 de março, que me foi enviado pelo Professor Luiz Gonzaga Bertelli:
O Espelho Biseautê
Para Paulo Caruso, amigo de uma vida
Abri o e-mail de Raquel Naveira, escritora mato-
grossense, veio uma poética crônica, ela assim que
publica na sua terra, envia aos amigos. Fui atraído
pela frase: “Restaurou a antiga penteadeira, com o
espelho de cristal bisotado e a banqueta de couro,
que ficava no quarto dela, a sua mãe.” Bisotado. Há
quanto, quanto tempo não lia, sentia, esta palavra?
Vi dona Maria do Rosario, diante da
penteadeira – também se dizia Psychê - com
espelho bisotado, às vezes chamado de bisotê.
Depois Fanny Marracini ensinaria que em francês é
biseauté. O que significava? Por mais que olhasse
para o espelho, não entendia, só via mamãe feliz.
Papai me dizia, “não sei o que é, mas sua mãe
quando se senta na penteadeira, fica tão bonita.”
Seria o biseautê? Mas o que era aquilo?
Perguntava, não respondiam. Desconfiei que
não soubessem, ou fosse coisa que criança não
podia saber. Quantas vezes eu entrava na sala,
todos murmuravam “tem criança” e se calavam,
Custava me explicarem o que era biseautê?
Ou bisotado. Essa coisa que fazia mamãe bonita,
feliz quando saía para o cinema, para a reza na
matriz, para uma festa? Mal ela saía, eu ia para o
quarto e ficava a olhar para o espelho, para meu
rosto, a fim de saber se eu estava mudado, era mais
bonito. Não, não estava, era feio. Esquisito, me
condenavam.
Um dia percebi que na margem do espelho
havia um pequena região diferente. Um mínimo
rebaixo. Chanfrado, disse vovô Vital. Quando me
ollhei nele me vi bonito. Somente naquela moldura.
Assim descobri o que era biseautê. Beleza. Cada
vez que entrava no quarto, me olhava naquele
estreito território, onde eu era bonito. Seria o mesmo
com mamãe?
Um dia, vi mamãe pentear o cabelo, passar
ruge, apanhar uma bola de vidro com quatro letras
COTY, passar o perfume, meu pai entrou: “você
está mais linda do que nunca!” Seria também aquele
perfume?
Um dia, dia mais horrivel, a funcionária que
ajudava na faxina, deixou cair o cabo do escovão
que dava brilho no assoalho, e o espelho partiu em
mil. A dor de mamãe. “Meu espelho, me fazia tão
linda”. Ajudei a pegar os cacos, encontrei pedaços
do bisotado. E se eu guardasse um pedacinho dele,
poderia mudar minha cara, quando estivesse
sozinho ? Mudando a cara, as meninas da classe
sorririam para mim, a filha do dono do bar me daria
um naco do lanche dela, tão apetitoso. Um dia, a
professora leu minha redação, chamava-se
composição, e disse: “Nota cem. A melhor redação
do ano. Quero que todo mundo leia para saber como
se faz.” Tirei meu espelho do bolso, olhei, ouvi:
“você é o menino mais bonito da classe”, dito pela
Neuce, irmã da professora Lourdes.
Quantas lembranças a partir de uma palavra: “biseauté”, “bisotê”, “bisotado”. As palavras criam realidades e belezas. Que bom esse diálogo entre escritores._ Merci, Ignácio. Só para ficar no francês.
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