Quinta-feira, no Blog do Alex Fraga, dia da crônica da poeta e escritora campo-grandense Raquel Naveira, com seu texto intitulado "Maria Rita e Cora Coralina".
MARIA RITA E CORA CORALINA
Raquel Naveira
Esta fotografia da matriarca dos Loureiro, Maria Rita, lembra muito a poetisa Cora Coralina: olhos pequenos e inteligentes, nariz comprido, sorriso de lábios finos e enigmáticos. Mulheres que dispensam legendas, pois elas próprias são legendas de uma época e de uma história: Cora, um século de vida no interior de Goiás, à beira do Rio Vermelho, no Brasil cerrado, no Brasil coração; Maria Rita, um século de vida na fronteira, à beira do rio Apa, raia líquida que sinaliza limite, na extremadura do Brasil com o Paraguai.
Assim como Cora, Maria Rita era guia e mestra. Cultivadamente rude, lia e escrevia com sensibilidade (coisa rara em seu tempo), além de pintar, cozinhar, bordar, tecer com esmero, o que lhe valeu a alcunha de “Mãos de Ouro”.
Sua trajetória sofrida, sólida e estável, é um filme de costumes de psicologia e didática doméstica de antigas estações. Cheia de saúde e força, era sugada de um profundo enraizamento tribal e telúrico. Uma mulher-árvore como aquela mangueira de sombra majestosa que se erguia no quintal atijolado de sua casa, palco de tantos encontros, conversas, brincadeiras, vozes infantis, desfile de moças vestidas de noiva com véus e tiaras de flores de laranjeira. Sim, as filhas foram todas de sua mesma estirpe: receptivas no convívio, artistas, educadoras, restauradoras de crepúsculos: Elisa; Angelina, a Sinhara; Rita; Conceição; Brandina; Anaurelina; Celina; Ilídia e Glória. Cada uma estendendo tenazes liames carnais e espirituais com sua prole, netos, amigos, as castas de sua gente. O filhos homens: Francisco, Salomão, Athanásio e Affonso, que recebeu o nome do pai, Affonso Loureiro de Almeida, enfrentaram as vicissitudes da lida pecuária, do trabalho rural, no meio das circunstâncias duras e concretas da fazenda Vaquilla, que ela recebeu por herança.
Esta outra fotografia do álbum, a casa de Maria Rita, em frente da qual passei tantas vezes, num canto verde e quente do Apa, é uma construção típica daquela região confinada. Os degraus, as colunas da varanda, o pórtico quadrado remetem à Guerra do Paraguai, esse que foi o maior conflito armado da América do Sul. Onde estaria Maria Rita em momentos tão cruéis? Terá visto a soldadesca cruzando aquelas terras rumo aos morros de Aquidauana, famintos, andrajosos, atingidos pela cólera morbo? Terá ela sido testemunha das histórias de sangue, violência de bandoleiros e isolamento, que ouvi contarem na minha infância, os olhos grudados na chama da lamparina? Refugiara-se a menina Maria Rita na fazenda de seus tutores Eponina e Athanásio, que a protegeram com amor. A mãe a deixara como babá, entregue ao seu destino de moça pobre, obstinada, em busca de auto-libertação. Sem mágoas, ela reencontrou e acolheu a mãe. Era alma purificada nas lutas e transformada na fé. Rendida a Cristo, preocupada em ajudar os pobres. Agradava os sacerdotes, com um doce, um bolo com café, uma palavra de quem conhece o valor dos ritos, dos gestos, dos vínculos de seu grupo social. A missa de seu centenário foi celebrada por quinze padres que vieram dos Estados Unidos especialmente para a comemoração.
Maria Rita marcou o caminho de tantas pessoas, apenas com a lucidez de sua existência. Tirou sábias lições do seu cotidiano e do murmúrio do vento nos bambus flexíveis vergados sobre o rio. Grandeza de mulher desafiando a sucessão de anos, dias e horas, formando em torno de si o mito de quem guarda mistérios, segredos profundos.
Maria Rita se parece com Cora Coralina. É fato. Amo as duas. Amo com melancolia pura o fim, a linha tênue da bruma da fronteira. Maria Rita é gênese de uma aliança que selei com meu esposo, seu descendente, num jardim fechado. Para ela, oferto os versos de Cora, respondendo à pergunta de onde vinha a sua poesia: “_ Ela cascateia há milênios./ Minha Poesia... Já era viva e eu, sequer nascida./ Veio escorrendo num veio longínquo de cascalho./ De pedra foi o meu berço./ De pedra têm sido meus caminhos./ Meus versos: pedras roladas no rolar e bater de tantas pedras.”
Façamos festa. Somos pedras de um altar, de um edifício, de uma linhagem. Celebremos esse advento: a memória de Maria Rita, pedra fundamental de uma cidade, de uma família incontável como estrelas.
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