
Sábado no Blog do Alex Fraga é dia de poesia com o jornalista, poeta e escritor de Brasília, Inorbel Maranhão Viégas, com "Foi assim"
Foi assim
Um dia, priscas eras, decidi atravessar o país de carona.
O período de férias da faculdade ia começar, minha família estava no Maranhão e eu em São Leopoldo, RS.
Era um tempo em que não havia internet, celulares, nem outras facilidades que o mundo globalizado teria mais tarde. As horas eram mais lentas. A vida era mais lenta.
Nas telas dos cinemas, aventuras como “Hair”, “Easy Rider”, “Woodstok” e “Zabrisk Point” seguiam nos mostrando do que a juventude era capaz.
A revolução dos costumes, faça amor, não faça guerra, topar desafios a medida que surgissem.
Pelo velho mundo, Dani “le Rouge” e seu maio de 68 seguiam vivos e fazendo o sangue pulsar mais forte nas veias.
Por aqui, a canção de Caetano, “Alegria, alegria” em que ele dizia caminhar contra o vento, sem lenço, sem documento, ecoava em nossas cabeças.
Pedir carona e ir. Ainda havia espaço pra isso. Havia confiança suficiente entre quem pedia e quem parava pra dar carona. O medo não fazia parte do nosso vocabulário. Eram outros os tempos.
Meu local de partida foi a cidade de São Marcos. Mais precisamente, parti da casa do Ewerton Balardim, meu amigo de faculdade. A memória não favorece agora, mas havia uma razão específica para ele ter-me convidado a partir de lá.
Os muitos caminhões partindo da cidade com cargas para o centro-norte do Brasil, talvez.
Eu não precisava mais do que uma razão como essa pra aceitar o convite.
Fui. Eu e meu mundo, que cabía em uma mochila.
E foi uma aventura inesquecível.
O primeiro trecho da viagem, entre o RS e Santa Catarina passou sem que eu percebesse. Estava encantado com a estrada. Com a serra. Com a lentidão da velocidade do caminhão em que eu ia. Com a conversa do motorista. Com o sol. Com as matas.
Quando chegamos em Lages já era noite. Ele avisou que dormiria ali. Mas também avisou que na cabine só tinha lugar pra um. Peguei minha mochila e desci.
Deserto de posto de beira de estrada à noite. Eu, a escuridão e o som dos grilos. Frio intenso. Nada além. O lugar mais quente era próximo ao calor que se expandia a partir dos pneus do caminhão.
Voltei à cabine e combinei com o motorista: vou dormir entre os pneus. Não saia sem saber se já acordei antes. Tenho intenções de chegar vivo ao meu destino. Ele riu e me tranquilizou.
Eu fechei a porta, fiz a mochila de travesseiro e acomodei a cabeça entre dois imensos pneus. O calor me fez dormir.
Pensando agora, era um tempo em que a coragem dos incautos nos movia.
O sol abriu a manhã seguinte. Partilhamos um café e… estrada. Perto de Curitiba ele me perguntou sobre fome. Acho que minha cara denunciou. Ele parou o caminhão numa área de acostamento. Abriu uma caixa e tirou de lá de dentro pão, linguiça e uma conserva de cebolas roxas. Nunca esqueci o sabor daquela combinação.
Chegamos em São Paulo, destino final dele. Era um feriado. E a praça da Sé daria lugar ao primeiro grande comício em defesa de eleições presidenciais pelo voto direto no Brasil. “Diretas já” era o grito. Eu estive lá. Junto com milhares de outras gentes.
Eu não sabia. Mas nascia ali a minha paixão pela notícia e por documentar. O repórter que nunca me abandonou, o que me fez ser quem sou e chegar onde cheguei. Foi ali.
Eu não sabia. Mas foi assim.
Inorbel Maranhão Viégas
Brasília, 28/01/25
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