Quinta-feira no Blog do Alex Fraga é dia de crônica com a poeta e escritora de Campo Grande (MS), Raquel Naveira, com Domitila
DOMITILA
*Raquel Naveira
Partindo do Páteo do Colégio dos Jesuítas, desço a antiga rua do Carmo, onde se localiza o rosado solar da Marquesa de Santos.
O piso assoalhado range um pouco sob meus pés. Em cada cômodo, pinturas, pedaços expostos da parede de taipa de pilão e pau-a-pique. Alguns canapés, o piano, a penteadeira e a pequenina cama da Marquesa, de madeira entalhada e florões, desnuda e sem dossel.
A um canto, o quadro retratando Domitila, essa personagem fascinante. O vestido é de seda cor de pérola, com uma faixa trespassada, um broche em forma de medalhão perto do decote. Os cabelos dispostos em cachos negros de cada lado do rosto um pouco duro, de olhos escuros e enviesados. Quais os segredos dessa mulher? Que mistério há nesse sorriso de lábios finos? Que gestos teriam esboçado essas mãos agora pousadas sobre o colo de marfim?
Uma mulher que viveu setenta anos. Uma trajetória de amores, viagens e peripécias. Vários ciclos numa só existência. Casou-se a primeira vez com um oficial do Corpo dos Dragões, o alferes Felício, homem violento, que a espancava. Com ele teve três filhos: Francisca, Felício e João, morto com poucos meses. A separação do casal foi trágica, depois dele a ter esfaqueado numa crise de ciúmes.
Alguns dias antes da proclamação da independência do Brasil, Domitila é apresentada a D. Pedro I. Apaixonam-se, tornam-se amantes, trocam cartas ardentes. Titila e Demonão, assim se chamavam na intimidade.
Fogoso, impulsivo, sensual, D. Pedro teve outros casos paralelos, mas Domitila foi a concubina mais importante, aquela que ele levou para uma mansão perto da Quinta da Boa Vista. Domitila torna-se dama camarista da sofrida imperatriz D. Leopoldina, que, sabendo de seu papel num casamento dinástico, jamais perdeu a compostura diante das infidelidades do marido, granjeando a admiração e o espanto do povo.
D. Pedro deu a Domitila o título de Marquesa de Santos, afrontando os irmãos Andradas, nascidos em Santos.
O imperador e a marquesa tiveram cinco filhos: um menino natimorto, Isabel Maria, Pedro, Maria Isabel e Maria Isabel II. Sobreviveram Isabel Maria e Maria Isabel II.
Intrigas, perseguições, demissões, prestígio abalado, tráfico de influências. O clima era negro, após a morte de D. Leopoldina. D. Pedro contrata segundas núpcias com a princesa Amélia, noiva de sangue nobre. Domitila é banida da Corte, voltando para São Paulo.
Nessa fase, conhece o brigadeiro Rafael Tobias de Aguiar. Casa-se com ele e tem seis filhos: Rafael Tobias, João Tobias, Antônio Francisco, Brasílico, Gertrudes e Heitor. Torna-se o centro da sociedade paulistana. O Palacete do Carmo é palco de bailes de máscaras, saraus literários, reuniões sobre ensino, artes e política.
Com a maturidade, Domitila revela-se uma dama devota, caridosa, protegendo os miseráveis, famintos e doentes.
De repente, eu a vi, velha, sentada no soalho de tábua, rindo, enquanto preparava escondido um cigarro de palha. Foi só uma imagem, uma presença, logo fixei novamente o olhar enviesado do retrato.
O que admiro nessa mulher? A resiliência, essa capacidade de lidar com problemas, de superar obstáculos, de resistir às pressões, sem entrar em surto, sempre com esse olhar duro que a todos encara. Maravilhosa a sua vontade de vencer, de jogar, de acreditar que tudo podia mudar para melhor, de investir na esperança, de alcançar e seduzir pessoas. Domitila procurou sempre soluções.
Lembrei de uma canção de Edith Piaf, “Non, je ne regrette rien”, que diz assim: “Não, não lamento nada, nem o bem que me fizeram, nem o mal, tudo para mim é igual.// Não, nada de nada, não lamento nada, porque minha vida, minhas alegrias, hoje tudo isso começa com você.”
Domitila me olha do retrato com ar desafiante. Como ela, não sinto mais receio, nem medo do fracasso. Há beleza em recomeçar do zero.
Belíssima crônica! Parabéns, talentosíssima Raquel!!!