top of page

Crônica - De pó a purpurina, por João Francisco Santos da Silva

Foto do escritor: Alex FragaAlex Fraga


Sábado no Blog do Alex Fraga é dia de crônica com o médico clínico geral, acupunturista e escritor de Campo Grande (MS), João Francisco Santos da Silva. com "De pó a purpurina".


De pó a purpurina.


Pedro Pó morreu atocaiado a beira do rio Bibaburí em 1954. Em sua cidade natal, Nirandópolis, demorou sete meses para que alguém se desse conta que ele havia sumido. Os conhecidos estavam acostumados a suas misteriosas viagens de negócios para São Paulo. Eles só constaram a ausência de Pedro Pó quando deixaram de escutar o barulho de seus tiros nas noites de sábado e o som de sua voz alta esbravejando com quem ele cismasse estar lhe olhando diferente. E foi somente depois de onze meses de seu desaparecimento que chegaram, meio que por acaso, as primeiras informações de que ele fora assassinato a caminho de Porto Quinze.

Naquela época as notícias vinham em conta gotas e ao longo de dois ou três anos, os conhecidos que passavam em viagem por Bibaburí traziam mais detalhes sobre como Pedro Pó havia morrido. Ele partiu de Nirandópolis contando para todos que ia a São Paulo, precisava fazer contatos com alguns criadores e negociar uma leva bezerros do Pantanal para o outro lado do rio Paraná. Segundo consta, a viagem foi interrompida em Bibaburí. Posteriormente descobriu-se que em outras três ocasiões, nas quais saiu de Nirandópolis dizendo ir a São Paulo, seu destino final também fora Bibaburí.

Pedro era um personagem ímpar, muito conhecido, porém nada popular em sua pequena cidade. Tinha fama de valentão. Resolvia tudo no tiro. Nos anos em que viveu em Nirandópolis deu muitos tiros, mas nunca matou ninguém à bala. Ele gostava de atirar para o alto. Se estava feliz atirava, se estava bravo também atirava. Era o tipo que falava alto e, a medida do possível, grosso. Sua voz tinha um falsete que as vezes desafinava, tornando o efeito do vozeirão um tanto prejudicado. Andava sempre bem vestido. De bombachas, botas de cano longo com esporas, paletó, chapéu de aba larga, um lenço no pescoço. Na cintura uma cartucheira cheia de balas, e dois coldres com revólveres pendurados.

Aos 40 anos estava com um princípio de calvície, mas o que lhe faltava de cabelo, sobrava de bigode. O bigodão preto e espesso, ele mantinha cuidadosamente penteado e engraxado com banha de preá. Homem livre, solteiro, sem filhos, adorava uma boa farra. Podia virar a noite dançando chamamé e bebendo cachaça como quem bebia água. Quando ficava mais eufórico dava uns tiros para o alto para fazer barulho e para que todo mundo soubesse que ele estava na área. Nesses momentos de libação alcoólica e euforia, sacava os dois revólveres virando as mãos e fazendo uma espécie de malabarismo que dependia de grande habilidade e flexibilidade das munhecas.

Pedro nem precisava anunciar sua condição de macho para ser respeitado. Talvez por sua valentia armada, e não por seus hábitos, também carregava a fama de mulherengo. Foi por isso que ninguém na cidade estranhou que Pedro Pó pudesse ter sido vítima de crime passional. Em alguma, de suas viagens a negócios ele devia ter mexido com a mulher do homem errado.

Em 1974, durante a pavimentação da rodovia Campão–Cidade Branca, no trecho próximo a Nirandópolis, mortos foram desenterrados. Ou, ao menos, notícias sobre um deles. Um operário que trabalhava na obra de pavimentação entrou no bar de Irineu Pó, um bolicho de beira de estrada, e logo puxou conversa com o proprietário.

— Puxa! Tem família Pó em todo o estado.

— Que eu saiba, sou o último dos Pó que ainda vive. Sou filho único e meu falecido pai só teve um irmão que morreu quando eu ainda era criança. Respondeu Irineu bastante surpreso.

— Que coisa estranha! Será que me confundi? Ano passado estava trabalhando na rodovia próximo de Biriguassu e lá perto, em Lagoa Fresca, tem um cabaré onde o pessoal do trecho frequentava. A dona do estabelecimento, uma mulher meio diferente, ela tem o mesmo sobrenome seu.

— Como ela se chama?

— Pedrina Pó.

As pessoas mais próximas sempre desconfiaram que o falecido tio tivesse uma amante em Bibaburí e o marido traído dera cabo dos dois. Será que essa Pedrina Pó tinha alguma coisa a ver com o assassinato do tio? Quem sabe ela foi o pivô do crime? Ou talvez fosse filha dele? O proprietário do bar cresceu ouvindo histórias sobre o tio. Na verdade, viveu à sombra da valentia e virilidade do parente falecido. O tio era como um fantasma a assombrá-lo, representava algo que Irineu nunca conseguiria ser. Rapaz sensível e avesso a qualquer tipo de violência. De temperamento pacato, introvertido e pouco sociável, gostava de ficar em casa na companhia de seu gato lendo uma revista de fotonovela enquanto bebericava um chá de erva cidreira

Depois de dias ruminando sobre o assunto, por fim, Irineu Pó tomou uma decisão, iria conhecer a tal Pedrina Pó. Fechou o bolicho sem dar maiores explicações aos seus minguados fregueses. Disse apenas que em uma semana estaria de volta. Intimamente, ele suspeitava que ninguém sentiria a sua falta. Irineu pegou o gato de estimação, uma pequena maleta nunca usada e seguiu viagem em seu fusca azul 1966. Passou direto por Campão e fez sua primeira parada em Bibaburí. Foi até a delegacia de polícia do lugarejo, e mesmo sendo algo irregular, o agente bisbilhotou em processos antigos e entre os poucos casos de assassinato, nenhum ocorrido em 1954. Porém, Irineu e o agente se interessaram por um caso um tanto peculiar e curioso, e nesse sim aparecia o nome de Pedro Pó.

Uma mulher traída disparou tiros na suposta amante do marido. No dia do ocorrido, a mulher flagrou o marido com outra mulher, ou pelo menos ela pensou que fosse. A amante era um homem bigodudo, vestido de mulher. Se tratava de um forasteiro que volta e meia passava uma curta temporada na cidadezinha. Ele se hospedava em uma casa a beira o rio Bibaburí. O local servia de alcova para encontros amorosos. Por sorte, o amante bigodudo só levou um tiro de raspão. Os dois amantes sumiram do povoado. Contudo, antes da fuga, o casal pediu e pagou para o vizinho espalhar na região que Pedro Pó havia morrido.

Confuso com as novas informações, Irineu seguiu de Bibaburí para Lagoa Fresca, um pequeno distrito de Biriguassu. E foi lá que ele encontrou o seu destino.

— Você tem os olhos iguais aos de seu pai. Fiquei sabendo quando meu irmão morreu. Não pude ir ao enterro. Suspirou a dona do cabaré.

— Eu sempre soube que o ..., hesitou para continuar a frase. — A senhora tinha morrido. Disse Irineu Pó.

— O Pedro Pó morreu quando eu nasci. Me casei, montei o meu próprio negócio. Perdi meu companheiro faz dois anos. E há muito tempo sou Pedrina Pó.

— Mas, se a senhora queria desaparecer, por que manteve o antigo sobrenome?

— O que fiz foi libertador, e ao mesmo tempo doloroso. Foi muito difícil abandonar a minha antiga identidade. Eu precisava manter algo que me fosse familiar. Você nem imagina a dificuldade que tive para encontrar um novo nome que fizesse algum sentido para mim mesma. Primeiro pensei em Natasha, mas não me identifiquei com o nome. Depois Pedra, Pedrita e então Pedrina. Ainda me faltava um sobrenome. Pedrina Pedra, Pedrina Purpurina, deixei Pedrina Pó. E foi como me batizei.

— Que inveja! Exclamou Irineu, ficando com as bochechas vermelhas, como se lhe tivesse escapado uma grave inconfidência.

— Eu falei que você tinha os olhos de seu pai. Mas, prestando mais atenção, você possui o mesmo olhar deslocado que eu tinha. Talvez o seu lugar seja aqui ao lado dessa sua tia velha. Venha! Quero lhe mostrar algumas coisas que podem lhe interessar.

Então a tia deu a mão para o sobrinho e o levou até um quarto onde havia um guarda-roupa e uma penteadeira com grande espelho.

— Você parece muito cansado. É perigoso pegar estrada assim. Descanse e durma um pouco.

Antes de sair a tia completou.

— Experimente algumas roupas e se tiver vontade passe maquiagem. Quem sabe você encontra aqui o que lhe falta. A vida é tão curta para perder tempo com besteiras. Dá muito trabalho e desperdício de energia fingir ser quem você não é. Eu fiz calos nos pés de tanto dançar com mulheres que me eram indiferentes. Quantas vezes me senti ridículo forçando a voz para falar mais grosso e dando tiros para o ar. Você ainda é novo. Dê uma chance para ser você mesmo.

O bolicho de Irineu Pó não foi reaberto. Na volta para casa, o rapaz perdeu o controle do fusca e caiu no rio Paraná. Seu corpo nunca foi encontrado. Com o desaparecimento precoce de Irineu, findou também a existência do clã dos Pó em Nirandópolis. Cumpria-se a lei, tão antiga e única certeza na vida que determina que todos um dia virarão pó, ou purpurina.

 
 
 

Comments

Rated 0 out of 5 stars.
No ratings yet

Add a rating
bottom of page