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Crônica - Carga Pesada, por João Francisco Santos da Silva, com Carga Pesada.

Foto do escritor: Alex FragaAlex Fraga


Sábado no Blog do Alex Fraga é dia de crônica com o médico clínico geral, acupunturista e escritor de Campo Grande (MS), João Francisco Santos da Silva, com "Carga Pesada".


Carga pesada


A cachaça desceu mais amarga que o habitual. A mancha marrom avermelhada próxima a bainha da calça lhe insistia que hoje até um suco de uva seria amargo e difícil de engolir. Chegou menos tarde em casa. Chegou em casa. Nem sempre voltava para casa. Quase sempre chegava tarde demais. Criança pequena dorme cedo. A maiorzinha não. Essa sempre lhe esperava. Ali estava ela a contemplá-lo. Porque seu pai sofria tanto? Tão bonito. Tão simpático. Querido por todos e todas.

Ele mantinha um olhar vazio mirando para algo invisível no fundo do copo com cachaça. Estava alheio a quase tudo. Com certeza não escutava o barulho que a mulher fazia na cozinha mexendo nas panelas e preparando a comida para ele. Servi-lo, alimentá-lo de comida era tudo que ela podia lhe oferecer. O resto que ela poderia lhe dar ele não queria mais. Os risos, o bom humor, a paixão, isso ela não tinha mais direito. Mas, mesmo insatisfeita, se satisfazia em alimentar o marido.

A vida é muito triste. Basta um pretexto para que se acabe. Esmagada, ensanguentada, largada no asfalto. Alguém tinha que testemunhar essas tragédias. Ferragens retorcidas, massa encefálica e gemidos. Talvez ele fosse a pessoa errada para esse tipo de serviço. Podia desistir do concurso. Lembrou dos tempos em que carregava o padre comunista. Vivia perigosamente passando a perna nos militares. Tomava cerveja para celebrar a vida. Diferente da bebida transparente e amarga ali na sua frente.

— Menino você é bom nisso! Já pensou em ser um líder comunitário? Com todo o seu carisma as pessoas seguiriam você de olhos fechados. Dizia o velho padre, sempre entusiasmado com a juventude e com as causas sociais.

Muito carismático, boa praça e com boa pinta. Quantas mulheres surgiram em sua vida. Mas, não nasceu para ficar com nenhuma. A da cozinha, mãe de seus filhos, cozinhava bem e por algum tempo e ao seu modo, devem ter se amado. Não era culpa dela. Os culpados foram seu pai e o maldito concurso. Não foi feito para essas coisas. Viver com a calça cheia de manchas dos outros. Depois de um tempo, as manchas impregnam e tornam-se parte dele também.

— Essa é a oportunidade para você ter um pouco de responsabilidade. Precisa parar com as farras e cuidar da família. É só levar os documentos e a carta de apresentação e você vai ser chamado. O pai, apesar de não ser um bom exemplo, falou duro com ele. E foi assim o início de seu fim.

No começo até pensou que poderia dar certo. Além de ser o único emprego com salário fixo que teve na vida, as mulheres são atraídas por homens de uniforme. Mas, elas

não sabem o que passa no íntimo desses homens em suas fardas militares. Toda a elegância e autoridade aparentes podem ocultar um caos emocional interno e insolúvel. Talvez alguma mulher apaixonada por ele, como a sua menininha, lhe conhecesse um pouco melhor que as outras. Se todos lhe vissem pelas mesmas lentes da filha, seriam capazes de identificar o que ainda restava de bom em seu interior. Mas, isso não lhe bastava. Ele não conseguia se reconhecer, tampouco sair da enrascada em que vivia. Os carnavais, o padre comunista, as paixões fugazes, não eram nada diante do asfalto ensanguentado, das ferragens retorcidas e das manchas em sua calça. A mancha depois de um tempo começa a feder. Você pode tomar banho, e mesmo esfregando bastante com sabão, o mal cheiro não sai mais.

Sua menina maiorzinha, ainda era pequena. Os olhos encaravam o pai, tentando lhe fazer sentir-se amparado. Ela não compreendia porque ele se afastava cada vez mais dela e do resto da família. Sempre triste e bebendo, estava indo embora. Ela só queria uma chance. Seu pai era muito diferente daquele homem ali sentado em frente de um copo de cachaça. Ele vestia um lindo uniforme de patrulheiro rodoviário. Para ela não havia manchas na calça. Apenas seu pai.

Aquela foi uma longa noite para os três. A mulher continuou em sua cozinha sofrendo por dentro. Não conseguia segurar o marido. Despois daquela noite, sua vida foi uma continua espera. Na verdade, ele já lhe havia deixado muito antes disso. Não a deixou por uma mulher. Até poderia ter sido por alguma das tantas mais que teve. Porém, com qualquer outra, seria igual como foi com ela. Continuaria aparecendo em alguma casa, em algumas noites, com a calça manchada de marrom avermelhado. As garrafas e os copos se tornariam companhia cada vez mais frequente.

A menininha ficou distante. Com apenas dez anos assumiu a responsabilidade pelo que restava da família. A mãe abandonada e emocionalmente fraca abdicara do posto de chefe da casa. Os três irmãos menores passaram aos cuidados da irmã. Carga pesada demais para uma criança. Menina linda, ainda precisou se defender de familiares com instintos perversos.

Encontros, reencontros e desencontros e tudo um dia termina. A quebra da lei natural da vida, bem dura por sinal, pode fazer que filhos virem pais de seus pais. Quando criança não conseguiu ficar com o pai em casa. Adolescente precisou ampará-lo em sua derrocada final. Carga pesada demais para uma jovem. Final de existência com gosto amargo de derrota em que todos perderam.


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Guest
Dec 02, 2024
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