Quinta-feira no Blog do Alex Fraga é dia de crônica com a escritora e poeta de Campo Grande (MS), Raquel Naveira, com Cacto em Flor.
CACTO EM FLOR
Raquel Naveira
Ficaram lindos os cactos na janela. De formas e tamanhos variados, deram um toque rústico e exótico para a sala. São duros, espinhentos, intrigantes, de um encanto único. Verdadeiras joias. Aqui e ali, de repente, abrir-se-á uma pequenina flor, vermelha ou amarela.
Que incrível essa planta americana! Os cactos suportam viver em regiões áridas. Armazenam água dentro dos caules, na polpa sumarenta, assim como guardamos sentimentos e emoções dentro de nós. O tempo todo nos mostram que temos uma força interna, poderosa. Que conseguimos sobreviver debaixo do sol da solidão.
Imagino os exploradores espanhóis quando se depararam com a antiga civilização dos astecas, com a Cidade do México, que se chamava “Tenochtitlán”, nome que significa “Lugar dos Cactos Sagrados”. Enviaram várias espécies de cardos para a Espanha, que enfeitaram os palácios de Granada e de Sevilha.
Impactante o poema “Cacto”, de Manuel Bandeira (1886-1968). Primeiramente ele diz que o cacto lembrava os gestos desesperados da estatuária e o compara a duas esculturas famosas: a de Laocoonte atacado pelas serpentes e a de Ugolino e os filhos esfaimados. A estátua de Laocoonte, feita em mármore por artesãos da ilha de Rodes, foi escavada em Roma, em 1506 e colocada em exibição pública nos jardins do Vaticano. Representa o sacerdote do deus Apolo, Laocoonte e seus filhos sendo estrangulados por duas serpentes marinhas. Trata-se de uma lenda da Guerra de Troia, relatada no livro Eneida, de Virgílio. Laocoonte em vão denunciara aos troianos o plano secreto dos gregos de penetrar a cidadela num imenso cavalo de madeira. Há mesmo surpresa, sofrimento, culpa, nos rostos e corpos retorcidos como cactos. Já a estátua de Ugolino é de gesso, esculpida pelo francês Rodin (1840-1917). O tema dessa obra é derivado do canto 33 do Inferno de Dante Alighieri (1265-1321), na Divina Comédia, em que o poeta descreve como o conde italiano Ugolino, acusado de traidor e acompanhado de seus filhos, foram encarcerados em 1288 e acabaram morrendo de fome numa alta torre. Sim, os cactos são imagens selvagens, que transmitem rebeldia, resistência ao fantasma da morte e da fome, que rondam os desertos e os castigos.
Continua o poema do pernambucano Bandeira narrando que o enorme cacto evocava também o Nordeste, os carnaubais, as caatingas. O mandacaru, palavra tupi que significa “espinhos agrupados danosos”, é espécie típica da caatinga. Parece um gigantesco candelabro. É um cacto folclórico, que simboliza a bravura do homem sertanejo, que aguenta na pele e no lombo as angústias e adversidades. Euclides da Cunha (1866-1909) em Os Sertões escreveu uma frase ícone da literatura brasileira: “O sertanejo é, antes de tudo, um forte.” É capaz de resistir ao martírio determinado pelo meio e pelo isolamento a que está condenado. Chega a limites e extremos com fé e coragem. Prova que o ser humano desafia as intempéries da natureza, a escassez, o abandono dos governantes. É um guerreiro, um teimoso combatente pelo direito à sobrevivência.
Interessante que o mandacaru, nas noites quentes, dá flores brancas, deslumbrantes, perfumadas. Mariposas, morcegos e abelhas se alimentam do néctar orvalhado. Daí surgiu a música de Luiz Gonzaga, representante do povo e da cultura nordestina, que diz: “Mandacaru quando fulora na seca/ é o sinal que a chuva chega no sertão”. A chuva, a renovação, o amor no coração da menina que largou a boneca.
Voltemos ao cacto de Manuel Bandeira. Um dia, um tufão abate-o pela raiz e ele tomba atravessado na rua. Quebra os beirais das casas, impede o trânsito dos automóveis, arrebenta cabos elétricos, priva a rua de iluminação e energia. O cacto como signo da própria arte moderna.
O último verso é fascinante. Vem sempre à minha mente, quando desejo enfrentar as dificuldades com um pouco mais de audácia, tenacidade e orgulho: “Era belo, áspero, intratável.” Levanto a coluna como um cacto. Prossigo com minha massa pura, meus espinhos estrelados, minhas raízes orgânicas, que geram pétalas rosadas e milagrosas.
Rego com apenas uma gota, uma lágrima, os cactos da minha janela. Espero. Confio que a primavera se lembrará de nós.
O poema de Bandeira é primoroso. A crônica traz uma bela percepção emocional do cacto como expressão da própria trajetória humana.
Nos convida a sermos fortes como o cacto apesar das adversidades.