Crônica - As Horas, por Raquel Naveira
- Alex Fraga
- 28 de dez. de 2023
- 4 min de leitura

Quinta-feira no Blog do Alex Fraga é dia de crônica com a escritora e poeta de Campo Grande (MS), Raquel Naveira, com As Horas.
AS HORAS
Uma mulher grisalha, vestida de preto, oculta pelo caule torto de um fícus, caminha em minha direção e me pergunta: “_ Que horas são?” Respondo-lhe maquinalmente. Ela se afasta. Lembrei-me então dos muitos anos em que dei aulas num colégio de freiras. Tempo de minha formação e juventude. Subia as escadas, segurando livros e cadernos, e, no último degrau, observava o relógio sobre o qual havia uma inscrição: “Que horas são? É hora de amar a Deus.” Meditava em meu interior que era mesmo preciso ter tempo para viver intensamente as horas, conectada a algo superior, em meio aos afazeres do dia.
Que horas são? O que fazemos com as horas? Temos vinte e quatro, mas os minutos escorrem pelas mãos. A velocidade tornou-se um novo paradigma, um padrão de comportamento. Queremos nos integrar, fazer parte do sistema, ser aceitos. Acabamos muitas vezes sugados e consumidos. Questionemos a pressa, a sede de informação, a loucura generalizada. Impossível deter as horas.
Os gregos imaginaram as Horas como um grupo de deusas porteiras do Olimpo, que presidiam as estações do ano, organizavam o cortejo das estrelas, traziam abundância de colheitas, espalhavam os primeiros raios de sol sobre os brotos e os botões de flores, amadureciam os carpos dos frutos na luz do outono, arrastavam caudas de cometas pela noite. As Horas representavam a justiça, o lado ético, guardiãs da ordem natural. Bailarinas róseas do pôr-do-sol.
As Horas nos mostram, como no texto bíblico de Eclesiastes, que há tempo determinado para tudo, para todo propósito debaixo do sol: para nascer e para morrer, para plantar e para colher, para derrubar e para edificar, para rir e para chorar, para espalhar pedras e para juntar, para buscar e para perder, para guardar e para lançar fora, para rasgar e para costurar, para ficar calado e para falar. O homem deve alegrar-se sempre, praticar o bem e gozar do resultado de seu trabalho. Fazer tudo pensando antes, planejando com cuidado suas ações e metas, para depois executá-las. Como escreveu o poeta Fernando Pessoa: “Deus quer. O homem sonha. A obra nasce.” A fé, a persistência e a calma são um estilo de vida.
É interessante como a palavra “Hora” é representada na literatura. Há uma ligação com o “agora e na hora de nossa morte” recitada na prece. É uma referência à hora da passagem eterna, da ascensão espiritual plena.
Em A Hora da Estrela, intrigante romance de Clarice Lispector, encontramos a personagem Macabea, seu drama de imigrante nordestina jogada na cidade grande. Mulher solitária, humilde, ao mesmo tempo fraca e resistente. Órfã, criada por uma tia que lhe dava pancadas na cabeça com os nós dos dedos, no intuito de educá-la. Escrevia mal, expressava-se com poucas e engolidas palavras, dividia um quarto de pensão com outras quatro balconistas. Um dia, num passeio, encontra-se com Olímpico de Jesus, um metalúrgico nordestino. Imagina o casamento, a construção de uma família. É quando ele conhece sua colega Glória, loira e sensual. Logo se interessa
por ela e esquece Macabea. Glória dá dinheiro a Macabea para que procure uma cartomante, esta lhe prevê um futuro brilhante, o encontro de um grande amor que virá num carro prata. Ao sair, “grávida de futuro”, Macabea morre atropelada. Torna-se o centro das atenções dos transeuntes. A princesa fatal. A estrela de cinema. A boca pintada de batom e sangue.
O fantástico A Hora dos Ruminantes do goiano José J. Veiga, mostra a história da pequena cidade de Manarairema que vê a sua rotina abalada por acontecimentos inexplicáveis. Primeiro uma legião de homens de procedência desconhecida decide acampar na cidade. Seriam imigrantes? Refugiados? Forasteiros? Ditadores? Seres extraterrestres? De outra cultura? De outra religião? De outro mundo? Estariam sob as ordens de generais, de bestas apocalípticas, de fanáticos, de bandoleiros, de emirados secretos? Os moradores temem represálias e passam a especular as intenções do grupo. O medo se espalha, os peitos se angustiam. Depois, a cidade é tomada por cães que chegam aos magotes no vilarejo. Os moradores ficam acuados, presos em suas casas enquanto os animais passeiam pela cidade. E, por último, chegam centenas de bois completando a alegoria. Os homens ruminam da boca ao rim as suas dúvidas e opressões. É longa a hora dos ruminantes.
E o conto de que mais gosto do regional e erudito Guimarães Rosa é o “A Hora e a Vez de Augusto Matraga”, que faz parte da coletânea Sagarana. Augusto Matraga desce do espaço dos poderosos para o dos oprimidos e marginalizados. De cruel, mulherengo e insensível passa a homem bom, abnegado, que encontra forças na oração e no trabalho do campo. É uma história de conversão, arrependimento, êxtase. De alguém que nega seu próprio ser físico em favor da paz entre os homens, salvando inocentes da sanha vingativa do chefe dos jagunços, o Joãozinho Bem-Bem. Matraga é alçado à condição de um Cristo que na morte cumpre os planos de um misterioso desígnio divino. Um único momento de entrega valeu toda a sua existência. Chegara, enfim, a sua hora, a sua vez. Quando chegará a minha hora, a minha vez?
A mulher grisalha, vestida de preto, oculta pelo caule torto de um fícus, perguntou-me que horas eram e afastou-se. Fechei os olhos. Vi-me subindo as escadas para mais um dia de lições. Pensei: “É hora de amar a Deus”.
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