Quinta-feira no Blog do Alex Fraga é dia de crônica da poeta e escritora campo-grandense Raquel Naveira, com seu texto Ao poeta Lino Vilachá.
AO POETA LINO VILLACHÁ
Raquel Naveira
Aconteceu assim: meu filho trouxe um pequenino livro da Editora Salesiana, que deveria ler para um trabalho escolar. Raoul Follereau, o amigo dos leprosos. Contava a história de Raoul Follereau, um jovem e brilhante jornalista francês. Num safári na África encontrou um grupo de leprosos abandonados e famintos. De volta à França, pensou em fazer alguma coisa por aqueles pobres sepultos vivos: lançar um apelo, escrever um livro.
Nessa época, Hitler entrara em Paris. Follereau, fervoroso cristão, havia escrito uma série de artigos intitulados: “Hitler, o anticristo”. Foi perseguido pelos nazistas. Refugiou-se num convento, perto de Lião, disfarçado de jardineiro.
Na Costa do Marfim havia uma ilha chamada Ilha do Desejo. Essa ilha era o inferno. Ali aglomeravam-se leprosos, vivendo em penúria como animais selvagens.
Uma freira do convento, Madre Eugênia, tinha um sonho: construir naquela ilha uma cidade digna, onde cada leproso tivesse sua casa, cuidados médicos, conforto, trabalho, acesso aos meios de comunicação. Follereau decide-se a ajudá-la, levantando a parte financeira. Passa a realizar conferências extraordinárias sobre o drama dos leprosos, contando casos comoventes, mostrando fotos, despertando as consciências. Consegue arrecadar dinheiro e um grupo de irmãs lideradas por Madre Eugênia foram levantando na Costa do Marfim uma cidadezinha chamada Adzopé.
Follereau passa a viajar pelo mundo inteiro, conhecendo a realidade miserável de milhares de leprosos. Cheio de indignação faz mais conferências, dirige-se aos poderosos da Terra e não obtém resposta. Lança então uma mensagem às crianças francesas, que respondem prontamente com cartas, donativos, auxílios, que são enviados aos leprosos.
Durante quarenta anos, Follereau e sua esposa dedicaram suas vidas aos leprosos. Durante seis meses por ano Raoul percorria o mundo dos sãos falando em igrejas e teatros, arrecadando doações. Nos outros seis meses vivia entre os leprosos, distribuindo o que arrecadara. Um milhão de leprosos foram curados nos centros de assistência médica organizados por ele.
Fiquei emocionada com a leitura. Lembrei-me do São Julião, leprosário de nossa cidade, um dos mais importantes do mundo. Um hospital de grandes pavilhões brancos entre eucaliptos, castanheiras, flores em profusão. Uma pequena aldeia com parque e igreja de estilo moderno. No São Julião eram internados os casos graves, sem condições clínicas de permanecerem junto à família e à sociedade.
Irmã Sílvia, freira salesiana, dedicou sua vida aos leprosos. Assim como todos os religiosos, médicos, dentistas, enfermeiros, voluntários, que ali trabalharam. O poeta Lino Villachá foi paciente do São Julião. A hanseníase se manifestou nele quando ainda era criança. Ficou com grandes sequelas: as
mãos atrofiadas, as pernas amputadas, os rins pararam de funcionar, a surdez fez com que mergulhasse no silêncio. Mas Lino nunca desanimou. Trabalhava em computação, dirigia a escola da comunidade e...escrevia. Versos de um coração que transbordava de sabedoria e emoção. Um dia, esse versos chegaram às mãos de uma moça, Zena, que gostou e escreveu-lhe uma carta. Corresponderam-se durante onze anos. Encontraram-se algumas vezes. Ela se formou enfermeira e foi trabalhar no São Julião. Casaram-se em 1987, na capela do hospital. Uma cerimônia linda oficiada por anjos. Lino morreu, alguns anos depois, cheio de amor, experiente de Deus, capaz de escrever poemas como este:
“Senhor, eu tenho um amigo
que é muito só,
porque não Vos conhece
e não acredita que possais existir.
Sua vida não tem sentido
e se desespera diante deste infortúnio.
Abri-lhe uma brecha, Senhor,
para que Vos veja,
Dai-lhe vossa mão,
Ele sofre e não sabe porquê” (Villachá, 1991).
Lino me mandava seus livros. Dizia, através de amigos comuns, que gostava de meus poemas. Escrevi-lhe certa vez. Só hoje, no momento da leitura deste pequenino livro, fiquei diante de uma verdade cruel: não tive coragem de visitá-lo. Percebi que essa verdade estava abafada, sufocada dentro de mim e que doía. O choro de arrependimento foi uma libertação. Escrevi:
A lepra é um mal bruto,
Cobre a pele
De cogumelos brancos
Entre fístulas
Cor-de-sangue;
Mas há uma lepra mais impura,
Morfética:
Aquela que cobre o coração;
Descobri em mim essa lepra,
Vi no espelho
Meu aspecto de leão,
Só hoje vi
E já se passaram tantos anos...
Acompanhei a trajetória de Lino,
Poeta leproso,
Seus versos,
Tocantes versos
De homem e criança acompanhando o enterro de um pássaro preto;
Versos cheios de flamboyants,
De acácias,
De castanheiras,
Tudo cercado pelos eucaliptos do São Julião;
Versos de uma alma
Purificada como ouro
No fogo do flagelo.
Nunca o vi...
Ele me dizia:
Poeta.
Eu que o consolava:
Poeta.
Por que?
Por que tive medo de sua figura frágil,
Pequenina,
Sem pernas,
Sem mãos,
Sua face deformada;
Tive medo de olhá-lo,
De fixá-lo para sempre dentro de mim,
Eu que o amava
Pois que amo a Poesia.
Como tenho coragem de falar de amor?
Queria, como antigos leprosos,
Esconder-me no mato,
Numa ilha deserta,
Sem nem mesmo um cão para lamber minhas chagas,
Tenho vergonha, sim,
De não saber amar.
Nunca o vi...
Talvez tivesse visto o Cristo,
O brilho das alamandas douradas,
As violetas de Zena.
A mão divina me tocou,
Curou minha lepra,
Já se passaram tantos anos
E só hoje vi.
Meu filho me fala com entusiasmo da vida de Raoul Follereau. É tão jovem meu filho, o sangue tão quente e bom. Isso, filho. Vença a si mesmo, aprenda a amar o próximo, que eu também estou aprendendo, a duras penas.
(A lembrança de Lino Villachá voltou forte neste dia 19 de dezembro de 2022, durante a confraternização da Academia Sul-Mato-Grossense de Letras, quando a musicista, escritora e acadêmica, Lenilde Ramos, apresentou-nos o livro Minhas Flores de Flamboyant, de autoria de Villachá. Relembrou a trajetória dramática desse poeta e cronista, que nos marcou a todos com sua garra, lucidez e energia de criar e viver. Hoje Lino Villachá é o nome de uma escola do Bairro Nova Lima, de Campo Grande, Mato Grosso do Sul e também o da rua de acesso ao hospital São Julião. Lino faleceu no dia 11 de julho de 1995 e foi enterrado sob as árvores floridas e frondosas do hospital, conforme seu desejo
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