Segunda-feira no Blog do Alex Fraga é dia de crônica com o professor universitário, poeta e escritor de Campo Grande (MS), Isaac Ramos com "Ampulheta de Brisa".
AMPULHETA DE BRISA
(Isaac Ramos)
Toda brisa é bem-vinda, sobretudo a noturna. Ela acaricia, excita, fragiliza e, às vezes, ruboriza o mais desavisado. Um sentimento sinestésico percorre o fio de teia de nuvens. Elas costumam ser volumosas, com contornos definidos e atiçam a imaginação das pessoas.
Por que torná-las assexuadas se elas não se despedem dos olhos do mundo? Por que invadi-las com palavras fálicas e roçá-las até o velcro dos nossos sentidos? Por que será que os homens tontos pensam tanto com a cabeça de baixo? O que se sabe é que o coração outona a cada batida. Às vezes inverna. Às vezes primavera os desejos de forma que veias ficam latejantes. O que dizer do verão pungente que aquece o mais frio gelo? Em quantas mansardas ele ainda terá que viver até que o panteão se abra? Uma orquídea selvagem o provoca de quando em quando. Parece que não tem paciência suficiente à chegada de outras primaveras. Não é fácil ser varão em estado de estátua. É preciso que o sal conserve as tenras carnes ou tempere o ânimo para que não sofra das dores de deserto. A alma quando pressente uma brisa noturna arrepia-se toda como brejeira metáfora. Porque é levada a sério somente quando a noite se veste com um pijama estrelado. Hora de dormir, poeta. Senão a cuca vem pegar.
Uma estrela apalpa o sinfônico alívio de versos. Se ela morre, o brilho fica. Se finca, o fusco arde. Se anda, noturna embalagem a envolve. Estrela guia, não tardas teu brilho para que não fiques sem manto. Por que finges sobreviver aos primeiros raios da esfinge? Por que partes, se o acaso não faz parte do seu ocaso? Por que vives a retinir sonhos de poeta se não serves sequer aos propósitos da Via Láctea? Será que os sentimentos do homem e da mulher são feitos da mesma brisa? A mansidão do poema tem um preço. Se paga um comboio de vento, recebem em troca miúdos cata-ventos. É preciso o horizonte, antes que o amanhã (des)invente e o pó de ouro suma nos vãos da ampulheta do tempo.
(Do livro ASTRO POR RASTRO, 2014, p.69)
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