Sábado no Blog do Alex Fraga é dia de crônica com o médico clínico geral, acupunturista e escritor de Campo Grande (MS), João Francisco Santos da Silva, com "A receita quase milagrosa".
A receita quase milagrosa
De tempos em tempos, o cuco saía do relógio e com ele mais outra hora. O ar pesado e quente do quarto deixava a atmosfera estanque. Sonolento, o cuco trabalhava amarrado. Enquanto as testemunhas insones esperavam que tudo terminasse rápido, o pássaro mecânico, senhor do tempo, prolongava o desfecho. O tempo, meio que parado por vontade do cuco e pela estagnação do ar, minava os ânimos das pessoas ali prostradas em vigília. As mãos da irmã desistiram da procura. Agora ela tinha pouco o que fazer com elas. Ora as unia em súplica, ora passava uma toalha úmida na face sudorética do homem deitado na cama. O corpo do irmão tremia da cabeça aos pés. Espasmos lhe sacudiam e modificando a fisionomia. Difícil saber o quanto de dor sentia. Horas atrás, antes do tempo seguir devagar, o homem ainda consciente reclamava de uma dor lancinante na boca do estomago, que como uma facada feria suas costas. Depois perdeu a consciência e de vivo virou quase morto. No início da noite, a aflição da família era em mantê-lo vivo. Agora, no meio da madrugada lenta e estagnada, a morte tornou-se a atrasada convidada de honra.
Doença rápida, mas não fulminante. Ele teve tempo para sentir que algo estava errado. Teve tempo para esperar a melhora sem fazer nada. Teve tempo para se incomodar o suficiente para ir ao curandeiro. Quase todos, com o mesmo problema, foram salvos apenas com a receita do curandeiro. Não costumava sair de casa dia de semana, mas não podia esperar mais. Consultou, ouviu o que precisava ouvir, com a receita salvadora seria curado. Guardou a receita por dentro da faixa de seu chapéu de feltro e voltou para casa. Podia ter ido direto na farmácia. Contudo, por algum motivo, preferiu esperar mais um dia. Quem sabe amanhã acordaria são e nem precisaria usar a receita. A vida é engraçada, foi só procurar o curandeiro que melhorou. Não era uma cura, mas se sentia bem. Foi apenas uma piada de mal gosto, e depois de dois dias a dor voltou intensa. A barriga latejava, começou a vomitar e passando mal, não conseguiu achar a tal receita. A irmã revirou os bolsos da calça, do paletó, da camisa e até dentro dos sapatos procurando a receita do curandeiro. Sem a receita e sentindo-se cada vez pior, teve que recorrer ao dono da farmácia.
Há uma tênue linha que separa remédios de venenos. Foi o que disse o médico ao examinar o paciente terminal. A limonada purgativa, vendida pelo dono da farmácia, arrebentou tudo por dentro. Não foram exatamente essas as palavras proferidas pelo
médico, porém, serviram para dar a difícil notícia para família. Restava pouco a fazer, além de diminuir o sofrimento com analgésicos. Se a limonada purgativa agravou seu estado de saúde, sua salvação foi perdida juntamente com a receita do curandeiro. Uma vez mais, a irmã vasculhou os bolsos do paletó largado ao lado da cama. Como ele havia perdido papel tão importante? Com a receita perdida, ao invés da limonada purgativa, ele estaria salvo.
A noite de procura e súplicas inúteis terminou em lágrimas. A irmã lavou o corpo do defunto e vestiu-lhe com a roupa de domingo. Quase pronto para o enterro, ela lembrou-se que faltava um último detalhe. Olhou para o cuco, e lá estava ele pendurado sobre o telhado do relógio. O chapéu de feltro que o irmão tanto gostava e que lhe era inseparável.
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