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Crônica - A inundação, por Athayde Nery

Domingo no espaço de letras, poesias e crônicas, do Blog do Alex Fraga, o trabalho literário do advogado, poeta, escritor Athayde Nery, na série Crônicas da Morena - "A inundação".


Crônicas da Morena - A inundação - 25/12/2018


Córrego Segredo corria com a força do Rio Paraguai. Córrego Prosa não ficava atrás e fluía feito o rio Paraná! E o tempo acabrunhado despejando seus lamentos em forma de um aguaceiro digno de pantanal. Nossa cidade morena assustada e acuada com esse destempero climático, olhava atônita. Coisas do famigerado aquecimento global soprando suas desavenças com o nosso humano modo de ser e destruir. Os dois córregos desfilando e desafiando a todos com suas águas bravias que literalmente cortam a cidade de cabo a rabo rumo ao Rio Anhanduí. Se juntam lá onde nasceu a cidade em frente ao Horto Florestal. Era o começo de tarde e parecia que já era noite. Em frente ao Shopping a velha inundação do Córrego Sóter abraçado ao Córrego Prosa levava tudo e todos. Carros mais ousados já boiavam feito barquinhos de papel Céu mais escuro e nuvens mal-intencionadas se avolumavam com raios e trovoadas assustando até mesmo os bombeiros já acostumados com essas precipitações inconvenientes. É que cercaram os córregos de asfalto e prédios. Já disseram que “A natureza não reclama, mas se vinga”. E as aguas cumprem esse papel sem dó nem piedade. Na beirada do Horto Florestal, dois jovens discutem o fim de uma relação. A menina não querendo mais o compromisso com Thiago. Thiago angustiado com a separação. Ele havia alimentado um banquete de expectativas. Era daqueles apaixonados de lamber os pés da bela menina, que do alto dos seus 16 anos, já estava interessada em começar outra relação. Ela era Gabriela que havia se apaixonado por Luciene perdidamente. Coisa de pele, segundo ela, que até assumia que não entendia “o porquê ”, mas, estava apaixonada por Luciene e Luciene por ela. Não valia a pena ficar enganando Thiago, até porque Thiago era muito gente boa. Thiago ouvia e argumentava. Não aceitava. Não entendia. Retrucava. Colocava o nível de preconceito que ela iria enfrentar. Ele como cristão e ela como musicista do coral dos cultos dominicais, iriam sofrer o “cão que o diabo criou” ou “o pão que o diabo amassou”. Chuva aumentava perigosamente fazendo já ondas no rio Anhanduí. O Prosa, o Segredo, o Sóter e vários outros irmãos de águas longínquas, como que enfurecidos, carregavam todas as lágrimas das mulheres que sofrem violência na cidade Morena para o pequeno rio a caminho do mar. A conversa, feita debaixo da árvore já encharcada de chuva que escorria tanto do céu quanto dos olhos de Thiago, não chegava num final feliz. Gabriela também chateada, mas, muito determinada pedia desculpas, mas era seu coração e não a sua razão que mandavam nela naquele momento. Thiago então num rasgo de desespero, já que nos seus pensamentos vinham apenas as manifestações de gozo e de que perdeu sua namorada para uma outra mulher. As risadas, as pilherias, o bullings homofóbicos se avolumando. Seus pais conservadores, seus amigos, seus inimigos, seus fantasmas. Levantou-se e vaticinou. – Nesse mundo eu não vivo sem você. Adeus! E saiu correndo para pular no rio Anhanduí ali na sua frente. A correnteza era intensa. Gabriela tentou segura-lo, mas, ele escapou e gritou: -Me larga. Prefiro morrer! Em meio a chuva alcançou a Avenida Ernesto Geisel, com carros andando mais devagar por conta da chuva. Foi atravessando a rua e se lançou no rio Anhanduí exatamente na junção entre o Segredo e o Prosa. Lá onde nasceu a cidade de Campo Grande. Gabriela em desespero pedia socorro, gritando para que alguém o salvasse daquela insensatez. Alguns carros pararam, as pessoas desceram. Já se podia ver o corpo de Thiago sendo lançado de lá para cá como uma folha seca ao vento. Como num átimo, uma mulher saiu do seu carro e pulou de vestido e tudo para tentar salvar o rapaz apaixonado que já ia quase que desmaiado boiando rumo ao Aero Rancho. A mulher muito ágil, conseguiu chegar até Thiago, pegando-o o pelo cabelo, escapou-lhe mais uma vez, momento esse que Thiago bateu fortemente a cabeça na parte de concreto do rio. Ficando ainda mais difícil o seu resgate. Mas, ela era ágil, agarrou novamente Thiago e o segurou firme para que dessa vez não escapasse. Conseguiu se firmar numa raiz na beira do turbilhão de aguas, esperando ajuda. Imediatamente outros transeuntes, que assistindo ao ato heroico da moça passaram a acompanhar toda a ação desenvolvida, formaram uma corrente humana e com uma corda conseguiram puxar os dois sobreviventes. Logo chegaram os bombeiros que iniciaram o procedimento de recuperação da vítima e da nossa heroína que nessa altura tinha perdido o sapato de salto e toda a sua maquiagem foi prejudicada. Cercada por curiosos, imprensa e policiais, ela teve que se identificar com a sua carteira de identidade que na verdade trazia o nome de Marcos Antônio da Silva. O Policial insistiu: -Mas qual o seu nome? E ela sem pestanejar – Meu nome é Marcos, mas, gostaria de ser chamada de Mariele.


Athayde Nery 31/12/2021




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3 comentários

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elemarcos
elemarcos
23 de jan. de 2022

Uau, simplesmente excelente esta crônica. Realmente, ... A natureza não reclama, mas se vinga”. ... Ademais, um final feliz, interrompendo um ato de "dar-se um fim" e, especialmente, permitindo ocasião para que "Mariele", com seu protagonismo de heroína, afastasse um malfadado preconceito. Parabéns.

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Nadine Bolzan Amarilha
Nadine Bolzan Amarilha
09 de jan. de 2022

Muito boa a sua crônica com um final inesperado.

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Maria de Lourdes da Costa
Maria de Lourdes da Costa
09 de jan. de 2022

Parabéns meu amigo, tem produzido um belo trabalho

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