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Crônica - A felicidade esquisita da autoajuda, por Lucilene Machado

Atualizado: 3 de set. de 2022

Sábado no Blog do Alex Fraga é dia de crônica da escritora e poeta Lucilene Machado, com seu texto intitulado A felicidade esquisita da autoajuda .


A felicidade esquisita da autoajuda

A frívola obrigação de demonstrar felicidade me cansa tanto. Livros de autoajuda pelos quatro cantos do mundo, filmes que te ensinam a alcançar finais felizes (como se eles existissem), seitas místicas que mostram o caminho da alegria, religiões milagrosas que te fazem rico e sorridente, milhares de canais do Youtube que oferecem conselhos de como ser amada, como deixar um homem apaixonado e vice-versa, como se isso fosse pré-requisito para uma satisfação ideal, ou como ser famoso, como alcançar êxito em seus projetos e etc., que às vezes me dá ganas de gritar que ando gostando cada vez menos do mundo, cada vez menos das pessoas e que a minha poesia não cabe no simulacro dessa felicidade de efeito, projetada por uma cultura de massa que pode ser adquirida de acordo com o seu poder de compra. A minha alegria não se sustenta na pressa do que existe aí fora, ela envolve investimentos humanos, paz, exercícios de espera, esforços, abnegação, altruísmo, serenidade, compartilhamento... Meu bem estar é lento e parece fugir dos referênciais apresentados pela mídia, sobretudo diverge dos verbos persuasivos que exigem a prática de uma ação imediata. Ando devagar com as palavras, leio devagar os livros, percorro devagar as histórias, vivo vagarosamente os sentimentos, amo os beijos demorados e os abraços longos. O sucesso do meu trabalho não me fará rica, nem me dará reconhecimento público notório. Ele é praticamente invisível. De modo que nunca serei parte desse grupo ostentatório dito “bem sucedido”. Às vezes a vida me dói tanto... dói o individualismo, dói a indiferença, dói ainda mais me levantar todas as manhãs e botar minha máscara de mulher autossuficiente, que pensa individualmente, que paga contas, ensina, orienta, aconselha, educa... compra flores para si, troca o pneu do carro e não se importa em tomar café, sozinha. Ainda que o sol dos dias castigue o meu ser e eu veja monstros detrás dos olhos dos homens que querem beber o meu sangue, ainda que eu tenha de botar cadeado nos lábios para não gritar ao contemplar as crianças afogadas na miséria do desconhecimento, boto o meu salto, empino o queixo e enfrento essa vida esquisita que se repete sem nenhum pudor. Os sorrisos brancos, clareados à luz de laser, confundem verdades, os interesses detrás das bondades estão nas primeiras ordens do dia, as perguntas feitas de pedra sobre pedra, gestos que imitam a caridade, palavras que remedam o amor... é muito tarde para mudar o mundo. Quando eu era criança, rodopiava sob o sol na dança selvagem da alegria, mas a realidade devorou as esperanças. Hoje, nenhuma palavra longínqua se apodera de mim, porque desenvolvi imunidade suficiente para não acreditar. Não acredito em felicidade nesse mundo árido e incoerente. Mas aceito um vinho ao final do dia para não lamentar meus sonhos incendiados e sentir a ternura me tocar, placidamente, ainda que pelo lado de fora.

Lucilene Machado


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