Crônica - A comitiva assombrada, por João Francisco Santos da Silva
- Alex Fraga
- 26 de out. de 2024
- 7 min de leitura

Sábado no Blog do Alex Fraga é dia de crônica com o médico clínico geral, acupunturista e escritor de Campo Grande (MS), João Francisco da Silva, com "A Comitiva Assombrada".
A comitiva assombrada
O velho Malaquias sempre contava do dia em que teve mais medo em sua vida. Foi no mesmo dia em que pela primeira vez ouviu falar da comitiva assombrada. Tropa formada por vaqueiros que montados em seus cavalos seguiam pelo espaço conduzindo algumas centenas de bois extraordinários. Nas noites sem lua, de longe só se avistava esferas luminosas ziguezagueando pela noite. Eram os olhos incandescentes dos bois fantasmas. Em noites claras de lua grande, o espetáculo tornava-se ainda mais aterrador. Podia-se distinguir o vaqueiro líder em seu cavalo marrom e que de tempos em tempos tocava o berrante emitindo um estranho e triste som fúnebre. A boiada devia ter uns 60 metros desde o líder com o berrante até o vaqueiro da retaguarda. Esse último cavaleiro, um ser espectral, possuía a mesma incandescência nos olhos que a dos bois. Apesar de sua face não ser muito distinta, da testa lhe saiam dois pequenos chifres. Como em qualquer comitiva terrena, havia o cozinheiro que com a mula carregada de mantimentos e panelas seguia bem mais adiante dos demais membros da tropa sobrenatural. As panelas e frigideiras, conforme batiam no lombo do animal ao ritmo de seu passo, produziam um som metálico característico. O cozinheiro solitário tinha a sina de seguir eternamente isolado do restante do grupo. Ele possuía a incumbência de levar a cozinha, armar uma trempe de pedras e fazer o fogo para preparar o quebra torto das almas aprisionadas naquela comitiva fantasmagórica.
Malaquias dizia que uma vez, num final de tarde, enquanto seguia pela estrada, indo da fazenda Monjolo para Piraputanga, pouco depois de passar pelas ruínas de antiga tapera de beira de estrada, começou a escutar o barulho de panelas batendo. De vez enquanto, ele parava o cavalo e ficava olhando para traz. Apurava os ouvidos tentando identificar de onde vinha o estranho som. Porém, parado o barulho cessava. Por algum tempo, ele esperava ali na vã expectativa de avistar, vindo pela estrada, o responsável pelo barulho. Então, quando retomava a jornada, o mesmo som de panelas batendo recomeçava e ia lhe seguindo. Depois de algum tempo e já amedrontado, Malaquias apertou o trote e saiu o mais rápido possível daquele lugar. Ele só apeou do cavalo quando chegou no bolicho do Zé da Estrada. Precisou tomar uma talagada de cachaça para parar de tremer. Após alguns instantes, e um pouco mais calmo, contou o ocorrido para o Zé da Estrada e para o índio Pedro Pí, morador antigo do Camisão. Pedro Pí, depois de escutar atentamente a história, foi categórico:
— Se a cozinha já estiver armada, à noite eles passam por aqui!
— Eles quem? Perguntou o velho Malaquias, que naquela época ainda era bem jovem.
— A boiada do conde do Lanfé*.
— História antiga. Continuou Pedro Pí. — Anos depois da Guerra do Paraguai, um coronel, veterano daquela peleja, recebeu como reconhecimento pelos serviços prestados, o título de conde do Lanfé e também, uma grande extensão de terras próxima a margem oriental da foz do rio Miranda. Para iniciar a sua fazenda, o conde do Lanfé enviou um emissário para negociar a compra de gado com um criador em Sorocaba. Foi comprado um lote de trezentas e oitenta cabeças de bois rústicos. E foram contratados oito peões, um cozinheiro e um líder de comitiva para conduzir a manada até as novas terras do conde. A comitiva deveria cruzar o rio Paraná e seguir sertão adentro rumo ao oeste até chegar na foz do rio Miranda. Jornada longa, que a depender dos percalços do caminho, poderia levar mais de 70 dias. Para líder do grupo foi designado Mucurano,
homem experiente e acostumado a conduzir gado para Mato Grosso. Uma vez, ele cruzou o rio Apa e chegou ao Paraguai. Isso foi logo depois da triste guerra. Ele contava que lá conheceu um curandeiro guarani. Naquela época ainda havia muito ressentimento com os brasileiros. Mucurano recebeu um conselho, que pela entonação de voz do curandeiro, lhe soou mais como uma maldição.
— “Mantendrás tu suerte hasta que encuentres un hombre com la gran cabeza”!
Homem supersticioso, depois daquele dia passou a ter como critério para contratação de peões, experimentar os chapéus de todos os candidatos antes de admiti-los a comitiva. Os peões não entendiam porque o chefe fazia aquilo. O fato é que nunca contratou nenhum peão que usasse chapéu maior que o seu. E foi seguindo esse critério que selecionou os peões e o cozinheiro para a empreitada até a foz do Miranda. Dos nove contratados para seguir em sua comitiva, Mucurano só não fez o teste do chapéu em dois deles. Porque esses dois, diferente da maioria dos peões, não usavam chapéu. O cozinheiro homem de fala fácil e descontraída. Muito alegre, sua face insinuava um leve retardamento mental. Ele usava enfiado na cabeça uma touca branca alta, muito encardida e fedendo a fritura O outro peão, de olhos rubros, fisionomia fechada e desagradável, quase não falava. Com os cabelos longos, não usava chapéu, apenas uma bandana que lhe recobria a testa e evitava que os cabelos lhe tampassem os olhos.
A comitiva iniciou a longa viagem de forma tranquila e sem incidentes. A lida com gado exige um pouco de psicologia. Há rezes dóceis e outras rebeldes. A tropa vai bem conduzida quando se identificam os focos de indisciplina. Os maus elementos devem ser apartados do grupo e seguir sobre uma vigilância mais atenta. Sem as más influências o restante da manada segue pacificamente a jornada. Nos primeiros dias de estrada, os bois problemáticos foram identificados e separados em um grupo para seguir na retaguarda da comitiva. E por seleção natural, o peão escolhido para seguir mais de perto o grupo problemático, foi o de cabelos longos e bandana. Assim como os bois, o peão, pelo menos durante a maior parte da jornada, não atrapalhou o deslocamento do grupo.
Por sua vez, o cozinheiro vivia às voltas com seus apetrechos de cozinha. Saia do acampamento da comitiva ainda no escuro das primeiras horas do dia. Depois ele percorria uns 10 quilômetros e parava ao encontrar um bom lugar para o almoço. O ritual era sempre o mesmo. Acender o fogo e queimar a comida da comitiva. Coisa simples, mas que dava trabalho. Ele devia ter algum método natural para saber, pois, costumava parar a sombra de uma árvore quando faltava exatamente duas horas para o sol ficar a pino. Assoprava o braseiro que retirara do seu último fogo. E iniciava a chama com gravetos catados ao longo do caminho. Nos dias de chuva era mais complicado ter um fogo forte para cozinhar, mas nos dias de sol favorável e com mais tempo conseguia até cozinhar feijão. Depois do almoço, lá seguia o cozinheiro com a mula e suas panelas. Sempre solitário, acompanhado pelo batelar das caçarolas e apressado para iniciar o preparo da próxima refeição da tropa.
Depois de mais de quarenta dias de jornada, a comitiva chegou num pequeno sítio. Uma casa de paredes caiadas e encardidas. Em frente dela, um frondoso pé de manga garantia uma sobra muito bem-vinda. O cozinheiro, primeiro a chegar no local, percebeu que a casa estava abandonada, e para sua surpresa a porta da frente aberta. Ao pôr o pé na entrada da cozinha, um tapete cinzento se deslocou lá de dentro e veio em sua direção. O cozinheiro só teve tempo de dar um salto para o lado. E pelo assoalho passou uma multidão de ratazanas que rapidamente se dispersaram pelo terreiro. Depois do susto inicial, o nojo fez com que o cozinheiro desistisse de entrar na casa abandonada. Ele
apenas pegou um balde que estava largado na varanda. Tirou a água para fazer o jantar de um poço que havia a poucos metros da mangueira. Preparou o jantar como de costume. E a comitiva pernoitou ali mesmo. Noite estranha foi aquela. Os peões jogaram seus capachos de dormir na varanda. E todos reclamaram de terem sido picados por insetos durante toda a noite. O cozinheiro foi quem desvendou o mistério. A casa estava infestada por pulgas. Deviam ser dos ratos.
A viagem prosseguiu e três dias após terem saído do sítio abandonado, Bartolomeu, um dos peões da comitiva, começou a sentir calafrios, febre e alguns bubões romperam em suas virilhas. No meio do sertão não havia muito o que fazer. Sem remédios, a comitiva ficou estacionada esperando a melhora do enfermo. Mas, em menos de quarenta e oito horas Bartolomeu estava morto. Mucurano pretendia enterrar o corpo e sair logo do lugar de tragédia. Contudo, também o peão de bandana iniciou com os mesmos sintomas, febre, calafrio e bubões nos sovacos e virilhas. A febre alta causava delírios e deixava seus olhos ainda mais rubros, como se houvessem labaredas em suas órbitas. Mucurano, tentando refrescar o corpo do doente, retirou a bandana para passar um pano umedecido em sua face. Foi quando percebeu que o peão possuía duas saliências na testa. O osso frontal crescido formava como dois chifres. De imediato, Mucurano recordou-se do curandeiro paraguaio. A sentença estava sendo cumprida. Mucurano deu-se conta que seu destino enfim o apanhara. Cinco dias foram suficientes para que nove dos 10 membros da comitiva morressem.
Por algum motivo qualquer, houve um único sobrevivente. Dizem que ele seguiu de trecho em trecho ensandecido, talvez pelo trauma do ocorrido, ou por já ser meio dementado pela hidrocefalia. Poderia ter sido ele o responsável pela contaminação dos colegas. Mas, é mais provável que o cozinheiro cabeçudo da comitiva fantasma tenha sido apenas mais uma das vítimas da peste bubônica. Nessa história causa estranheza o fato de não haver qualquer registro da existência da propriedade do Conde do Lanfé. O fato é que ninguém nunca reclamou pelo lote de gado desaparecido. E tudo indica que até hoje a comitiva assombrada vagueia pelo sertão a procura das terras do Conde do Lanfé.
*Lanfé: inferno em crioulo haitiano.
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