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Foto do escritorAlex Fraga

Crítica - Mulher de pura luz, metáfora de encantamento: "Eu vou ali ser feliz, não volto mais"


Por Isaac Ramos (Show de Adriana Calcanhotto) - - -


Tenho o corpo italiano/ O nascimento no Brasil/ A alma lusitana/ A mátria africana” (Prova dos nove – Adriana Calcanhotto) - - -


Em um sábado mágico de pura luz e encantamento, no Bosque dos Ipês, Adriana Calcanhotto trouxe seu show “Errante”, álbum de número 13 em estúdio, que ela tocou na íntegra. Aposta arriscada tocando poucos sucessos. Entretanto deu certo. É uma artista que se reinventa pelos versos criativos e por melodias altamente elaboradas. Ela entrou no palco, depois das 23h, com uma afinadíssima e virtuosa banda, a qual contou com a presença de um naipe de sopros/metais, pela primeira vez. Os componentes: Pedro de Sá (guitarra), Domenico Netto Lancellotti (bateria), Guto Wirtti (baixo acústico), Jorge Continentino (saxofone, flauta e teclados), Diogo Gomes (trompete e flugelhorn) e Marlon Caldeira Sette (trombone). Iniciou com a alegre “Prova dos nove”, versos na epígrafe, como se fosse uma banda de pífano. Na sequência, interpreta o samba “Beijo sem”: “Noite alta, é meu dia/ E a orgia, é meu bem”. Depois “Lovely (amável)”. E vem “Pra lhe dizer”, uma mistura de xote com voz de fado, com uma letra que fala de uma superação de amor: “Só pra dizer que vou trocar de sonho/ Eu vou mudar de você / E pra dizer que vou levando os planos/ Que por anos alimentei”. O destaque fica por conta das luzes do palco que, nesse instante, são apagadas e a cantora tira uma lanterna do bolso do seu vestido creme, que vem até os pés, e alumia cada um dos músicos que começam a solar, em verdadeiro desafio. Aplausos efusivos. Pura encantação. Na quinta música, veio o sucesso “Mais feliz”, música de Bebel Gilberto e Cazuza. Hora de o público entoar em uma só voz. Volta o samba com “Quem te disse?”, em uma voz que lembra o tom de Elis Regina: “Não me quer porque sou branca/ Não me quer, eu não sou moça/ Não me quer por ser mulher/ Ainda que eu fosse santa”. Sua origem judaica, recentemente descoberta, se apresenta nesses versos: “Se eu não fosse sefaradim/ Novinha/ Quem disse que o amor vê diferenças?” Letra e interpretação impecáveis. Segue com o carro-chefe do novo álbum: “Horário de verão”, que lembra seus antigos sucessos, “Houvesse modo de fazer/ O amor obedecer”, um samba canção em que sua voz, a flauta, o violão e a bateria se misturam em compasso mágico. Os metais dão o tom da imensidão. Os acordes do contrabaixo acústico, os metais e a percussão anunciam “Jamais admitirei”, um samba dor de cotovelo sincopado, que faz lembrar a composição da saudosa Maysa: “Meu mundo caiu”, em uma época em que poucas mulheres compunham. Na canção de Calcanhoto: “Ninguém vai me ouvir dizer/ Que este samba é para você”. A seguinte é um velho sucesso do disco de estreia, Enguiço (1990), “Naquela estação”. Momento de sublimação: “Você entrou no trem/ E eu na estação vendo o céu fugir”. O baixo dá os primeiros acordes em “Reticências”, com a bateria seguindo o compasso melódico e a letra: “Suas camisetas seguem nas gavetas/ As havaianas pretas no corredor (...) Reticências/ Tudo seu, tudo seu/ Tudo seu ainda”. A próxima, os pratos retinem e o contrabaixo chama o violão de “Levou para o samba a minha fantasia” (o título diz por si só). Os acordes vão costurando o samba nervoso e chama os metais, em um crescendo até o final da música. Hora de voltar a um sucesso antigo do álbum Senhas (1992). A escolhida foi “Esquadros”, para o público cantar junto: “Eu ando pelo mundo prestando atenção/ Em cores que eu não sei o nome/ Cores de Almodóvar/ Cores de Frida Kahlo, cores”. Suspiros gerais. Hora de aumentar e mudar o ritmo. Um xote rock de nome “Nômade” “... quer dizer sem pouso/ Nômade é quando a casa é um corpo/ E é onde te recebo, e é o que entrego/ E sou tudo o que carrego amanhã cedo”. Os metais se apresentam ao longo da música, como se regidos pela batuta de um maestro, vão crescendo nervosamente até o momento em que há um solo de bateria de Domenico e Adriana Calcanhoto como que incorpora uma entidade, possivelmente Iansã, vibrando e dançando festiva/mente. E vem “Era isso o amor?” que vale mais pelo ritmo, um rock, do que pela letra: “Arder, arder, queimar/ Consumindo-se em seu umbigo? / Era isso o amor?/ Será possível? Serem amado e amador?”. Retoma com um sambinha, “Larga tudo”, que fez-me lembrar de “Meu caro amigo” de Chico Buarque: “... e vem passar/ A eternidade desta madrugada/ Num quarto de hotel/ Com vista pro céu”. Efetivamente já era madrugada. Os artistas agradecem e se retiram. Hora de pedir o BIS. E, finalmente, Adriana Calcanhoto emenda dois sucessos: “Vambora”, “Entre por essa porta afora/ Você tem meia hora para mudar minha vida”. E mudou meu gosto pelo samba que, realmente, não pode morrer. E fecha com a bela “Maresia”: “O amor me deixou/ Levou a minha identidade/ Não sei mais bem onde estou/ Nem onde há realidade”. Esta última me conduziu a uma atmosfera epifânica. Até havia me esquecido do desconfortável atraso. Show previsto para às 20h. Às 21h20, a campo-grandense Georgia Castro, fenômeno no Spotify, cujas músicas têm milhões de acesso, entrou. Agradou muito; todavia, tocou poucas músicas. Na sequência, Maria Claudia e Marcos Mendes, como esperado, desfilaram um belo repertório de músicas autorais. Ocorre que o público estava inquieto com o atraso. Ainda assim valeu a pena, mesmo que a divulgação dessas atrações de Mato Grosso do Sul tenha sido pequena. Fica a dica para os realizadores da MKT Produções. E, caso tragam outro show desse nível, voltarei às letras encantatórias.

(Isaac Ramos)

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