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Conto - Uma guerra para dois irmãos, por João Francisco Santos da Silva

  • Foto do escritor: Alex Fraga
    Alex Fraga
  • 7 de set. de 2024
  • 4 min de leitura

Sábado no Blog do Alex Fraga é dia de Conto com o médico clínico geral, acupunturista e escritor de Campo Grande (MS), João Francisco Santos da Silva, com "Uma guerra para dois irmãos".


Uma guerra para dois irmãos


O fogão a lenha fazia parte da rotina da casa desde sempre. A guerra não. Havia iniciado há longos quatro anos e parecia que nunca mais terminaria. O irmão mais velho não gostava de comer verduras e legumes crus. Na grande panela de feijão a mãe colocava repolho, chuchu, agrião e o que mais ela julgasse benéfico para os pulmões do primogênito. Família grande, do mais velho a mais nova, dava mais de vinte anos de diferença. A caçula, criança ainda, tinha poucas tarefas para fazer na casa. Uma delas era buscar lascas e sobras de madeira na madeireira perto de casa. Da menina dependia o fogo para fazer toda a comida da família. Tarefa importante, mas, coisas importantes para adultos podem ser muito chatas para uma criança.

Tempos de guerra, tudo muda, fica estranho e mais difícil. Vizinhos tornam-se inimigos. Muitos medos, desconfiança e gente sob suspeita. Na escola a menina gostava de se atirar embaixo da carteira escolar. Treinamento para se proteger de um possível bombardeio aéreo. Evento que nunca ocorreu, mas, ao menos serviu de brincadeira para as crianças em meio a toda tragédia aprontada pelos adultos.

Caminho longo até a Europa. O irmão foi convocado para lutar naquela guerra distante. Não adiantou dizer que era arrimo de família. Mãe viúva e ainda com três ou quatro crianças pequenas para criar. Ele era quem sustentava a casa. E lá se foi ele embora rumo ao front. Mesmo sem o irmão mais velho em casa, o café e o feijão continuaram precisando de fogo e de lenha para serem preparados. Os treinamentos de guerra também prosseguiram. A menina não gostava muito de ir buscar a lenha. Mas, sempre que possível tirava proveito da situação e inventava algo mais divertido que a aborrecida tarefa de catar gravetos.

Na Europa, já quase em final da guerra, os soldados brasileiros participavam de combates em colinas. No Brasil em uma cidade portuária não havia muitas opções de montes e montanhas. O lugar mais alto da cidade apenas se enquadrava na categoria de morro. E foi o Morro da Cruz o lugar escolhido para a realização de exercícios militares. Também foi lá o lugar escolhido pela menina e dois primos, de quase a mesma idade, para buscarem a lenha do dia.

O filho mais velho a caminho do campo de batalha. A filha mais nova, criança ainda, indo para o meio de um terreno onde estavam sendo realizadas manobras militares. Parecia uma tragédia anunciada. Coitada daquela mãe viúva. Houve tantas tragédias naquele período tão triste. Campos de concentração são lugares execráveis em qualquer parte, seja no foco do conflito ou na periferia. Brasileiros alemães ou alemães brasileiros. Todos suspeitos. Alguns culpados, talvez. E naqueles tempos houve de tudo. Possíveis espiões, possíveis bombardeios, possíveis idas para guerra, treinamentos para possíveis batalhas e até campos de concentração.

O irmão mais velho já estava na última escala em solo brasileiro, prestes a embarcar para Europa. Durante todo o tempo que durou a sua viagem, manteve a mãe informada com postais. Breves cartões com uma paisagem local de um lado e no outro apenas a data e seu nome escritos a caneta. O trio, formado pela menina e os dois primos, iniciou uma marcha rápida subindo pela face oeste do morro. Avançavam correndo e pulando. De vez em quando paravam, entretidos com alguma coisa qualquer. No início pegavam somente os gravetos caídos pelo chão. Subitamente, se depararam com uma trilha ladeada de bandeirolas. Os três ficaram fascinados com a novidade, o morro enfeitado com lindas bandeiras verdes e vermelhas. Além de bonitas, com as hastes de madeira daria para cozinhar muitas panelas de feijão. E pensando assim, os três foram retirando todas as bandeiras fincadas na encosta do morro.

Subiram e desceram o morro sem problemas. As tropas sim teriam sérios problemas, se ao invés de três crianças de 9 anos fossem, soldados inimigos. Os três primos só não levaram o espólio de guerra para casa, porque foram interceptados por alguém do alto comando que lhes mandou repor todas as bandeirolas no seu devido lugar. E esse foi o segundo erro cometido pelos combatentes adultos. As crianças fingiram aceitar as ordens e voltaram pelo mesmo caminho. Mas, assim que estavam fora da vista do inimigo, mudaram de rota e foram embora pelo outro lado do morro. Jogaram a pilha de bandeiras fora, mais por medo da mãe que do comandante das tropas. Ainda bem que não houve combates em solo brasileiro.

A guerra um dia acabou. O irmão mais velho continuou comendo seu feijão reforçado com verduras e legumes. Sim, ele voltou para casa ileso. De última hora não embarcou para Europa. Conheceu muitos lugares no Brasil. A mãe ficou com uma linda coleção de postais. A menina seguiu sabendo viver. Final feliz para os dois irmãos naquela guerra em que cada um participou à sua maneira.

 
 
 

3 Comments

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Sep 07, 2024
Rated 5 out of 5 stars.

Parabéns pelo texto

Solange Moraes

Sorocaba SP

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Guest
Sep 07, 2024
Rated 5 out of 5 stars.

Gostei muito. Legal o final.

Cecília Moura - Campo Largo PR

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Sep 07, 2024
Rated 5 out of 5 stars.

Parabéns. Excelente conto.

Lucas Martins de Marco.

Porto Alegre RS

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