Sábado no Blog do Alex Fraga é dia de Conto com a escritora e poeta de Amambai ((MS), Helena Pereira, com "Ritual"
RITUAL
Impreterivelmente, todas as manhãs, ao primeiro vislumbre da aurora, antes de abrir o olho, a velha já sabia o que aconteceria nos próximos vinte minutos. Era assim, desde que ELE tinha entrado em sua vida.
A velha despertava e permanecia imóvel na cama, ansiando por um minuto extra de tranquilidade. Nem se mexia. Não ousava abrir os olhos, quase nem respirava, pois tinha a certeza de que estava sob escrutínio do seu algoz. Após este breve momento, resignava-se com a porção diária de paz e serenidade que lhe cabia, como se fosse uma pilulazinha de comprimido de alívio.
Só então, ia abrindo os olhos bem devagarinho, com movimentos extremamente lentos. A luz da penumbra do quarto começava a entrar pelos seus olhos ainda cansados da noite de sono. Movia-se na cama como um réptil à espreita da presa. Mas sabia que ali, a presa era ela.
Por fim, tomava um gole generoso de coragem, respirava fundo, e decidida, abria os olhos. Era aí que tudo começava. Lá vinha ELE em cima do seu rosto, olhava bem dentro dos seus olhos, como se quisesse ler o mais profundo da alma. Olhos fixos. Chegava um pouco mais perto, quase tocando o nariz da velha, que via diante dos seus olhos de remela abrir aquela boca cheia de dentes e de dentro dela saia o primeiro miado. Era aí que a velha levantava rapidamente.
Os miados do gato se multiplicavam como uma sirene desesperada de uma ambulância. Sem parar o gato miava. A velha corria e abria a porta da casa. O gato saía.
Era o tempo de escovar o cabelo e os dentes, rapidamente. O gato voltava. Miava, miava, miava. Tinha que pôr a comida no prato, não importava se tinha comida. Tinha que por. Tinha que ser um montinho. Não podia esparramar, era do montinho que o gato gostava, e se não fosse montinho... Miava, miava, miava, e não comia. Montinho feito, a bocarra ia em direção ao prato igual uma pá-carregadeira, se enchia de cair pelas beiradas, comia esfomeada.
Era a hora que a velha corria e separava rapidamente a roupa para vestir. Vestia uma peça, o gato miava, alisava o gato, vestia outra, o gato miava, alisava o gato. Se não fosse assim a sirene de miados não parava nunca.
E era assim, religiosamente o ritual matutino, desde que resolveu adotar o bichano.
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