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Crônica - Renúncia materna, por Rita Pacheco Limbert



Segunda-feira o Blog do Alex Fraga mostra uma crônica da professora universitária e escritora de Bonito (MS), Rita Pacheco Limberti, com o texto intitulado "Renúncia materna"


RENÚNCIA MATERNA

Rita Pacheco Limberti


À véspera do dia das Mães o shopping estava lotado. A data explicava a presença de homens às compras, acompanhados de seus filhos e filhas em busca do presente ideal. Alheias aos sentimentos e desejos individuais, as massificantes propagandas reduziam o mérito materno a objetos de consumo desnecessários. O essencial escapa às datas comemorativas. A essência é do cotidiano, do imperceptível, dos laços, de cada pessoa... e o “dia das mães” se propõe, antes de tudo, a projeções imaginárias, englobando cada mãe, tão única, em uma única mãe ideal e – por isso – inexistente.

Curiosamente, mesmo sem existir, essa mãe virtual (que todas as mães de verdade passam a ser), reina absoluta. Então todos compram presentes para ela. “Sua mãe merece”, “ela é a “rainha do lar” ... e aparecem imagens de mães bonitas, sorridentes e bem tratadas, padrão indefectível, camuflado por diferentes idades e etnias, tons de pele e tipos de cabelo... mas todas iguais... iguais ao ideal... à mãe inexistente...

Iludidos pela camuflagem desta suposta diversidade, os filhos e as filhas, até mesmo as próprias mães dão um jeito de encontrar certa empatia e identidade entre o modelo e a mãe de verdade. Uma mãe imaginária... de filhos igualmente imaginários... cada qual assume seu papel, no necessário jogo das trocas simbólicas: as mães esperam... e os filhos vão às compras.

Fui almoçar. Em uma das mesas da praça de alimentação estava um homem e sua filha adolescente. A extrema semelhança dos traços fisionômicos era traída pela discrepante diferença no trato pessoal. Ele estava modestamente vestido, tinha os cabelos e a pele opacos, as mãos judiadas, de dedos grossos, que ele tamborilava na mesa, num claro sinal de estar pouco à vontade naquele mundo, que certamente não era o seu e que ele contemplava com toda a estranheza e certa ansiedade, deslizando os olhos para lá e para cá.

A filha, bem trajada, cumpria perfeitamente a figura de “público alvo” daquele lugar: de celular, bolsinha a tiracolo, sapatilha, blusinha de alça e jeans - tudo exatamente igual aos modelitos das vitrines das lojas mais baratas -, longos cabelos escovados e maquiagem idênticos aos modelos da internet que pululam nas telas do celular, de onde ela não desgrudava o olhar. Sobre a mesa, uma sacola de uma loja popular parecia ser o presente para a mãe.

A menina saiu e voltou com sua refeição: um prato de yaksoba fumegante. Chegou, colocou o prato à sua frente e continuou olhando o celular. O pai tamborilava na mesa, no espaço vazio à sua frente. Olhou o prato apetitoso da menina, deu uma grossa engolida, desviou rapidamente o olhar. A filha fez uma garfada sem olhar para o prato, sorrindo para o celular... O pai coçou a sobrancelha disfarçando outra olhada e outra engolida... tamborilou novamente na mesa... A filha assoprou a garfada e olhou novamente para o celular... Tentando deter-se de olhar para a comida, o pai remexeu o interior da sacola, olhando para dentro dela demoradamente... A filha colocou na boca a primeira garfada... O pai deu a quarta engolida...

A tortura se arrastava... era horário de almoço... o pai não comprara nada para comer... A filha, à sua frente, desatenta à sua fome, segurava cada garfada pronta antes de levar à boca, olhando para o celular... depois virava, assoprava, olhava o celular... a garfada ali pronta... o pai engolia, olhava fixamente, sem disfarçar (a filha não estava vendo) ... ela olhava para o celular com a garfada suspensa ... ele a comia com os olhos... e engolia, engolia, engolia... de vez em quando desviava o olhar... e tamborilava os dedos grossos, olhando para o chão...

Minha comida esfriava no prato... eu olhava a cena... e não engolia... em algum momento o homem virou-se e viu-me... seu olhar era rude e simples, bom como o olhar de mãe... Engoli grosso... voltei-me para o meu prato... Enquanto mastigava a última garfada, tamborilei... “Como pode um homem tão tosco ser capaz de uma renúncia tão materna?”


Dourados, 11/05/19

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3 Comments

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Guest
May 28
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Excelente crônica.

Lucas Martins

Salvador BA

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Guest
May 27
Rated 5 out of 5 stars.

Adorei a vivacidade querida amiga Rita.

Paulo Portuga

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Guest
May 27
Rated 5 out of 5 stars.

❤️❤️❤️❤️❤️❤️❤️❤️❤️❤️❤️❤️❤️❤️👏👏👏👏💪💪💪💪💪💪👏👏👏👏👏

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