Conto - Révellion no Prata das Mangabeiras, por Nelson Araújo Filho
- Alex Fraga
- 27 de dez. de 2023
- 7 min de leitura

Quarta-feira no Blog do Alex Fraga é dia de conto com o advogado, poeta, escritor e presidente do Instituto Agwa, Nelson Araújo Filho, Campo Grande MS.
RÉVELLION NO PRATA DAS MANGABEIRAS
Vamos para praia! Barreirinhas e seus Lençóis, recém descobertos, coincidiam com nossa vontade de escapar da repetição. Distância não importava muito, mas da Belém-Brasília logo enjoamos. Cortar caminho pelo Jalapão, outra enorme novidade, pareceu-nos um encanto. Pernoite em Porto Nacional. Um hospital havia sido convertido em hotel. O salão de café era o antigo centro cirúrgico e a cozinha, a sala de apoio. A comida e os pratos passando no abre e fecha da janelinha e eu só conseguia me lembrar do Amado Batista cantando O Fruto do Nosso Amor. Foi terrível. Seguimos, superado o trauma, para Ponte Alta. Chegamos na hora do almoço. Bem pequeninha. Um alto astro só. A cidade inteira no rio. Dali para frente seria o deserto do Jalapão, extensa chapada de campos e savana, pouco explorada, desguarnecida de fauna e gente. Por isso era chamada de deserto. No almoço em Ponte Alta, um dos presentes, atento a nossa conversa, veio propor que seguíssemos juntos, em caravana, para cruzar o vazio até Mateiros, destino em comum. Seria mais seguro para ambos, disse. A expectativa do incerto encheu-nos de emoções conflitantes. Temperou a tarde que, apesar das promessas, transcorreu serena, vazia de carros, gente, animais, fazendas, cerca, tudo. Definitivamente impressionante o deserto.
Mateiros era um vilarejo de três ruas e poucas casas, na borda leste da Chapada. O Hotel do Cardoso, a pequena residência do próprio, era único. Ficamos eu e minha mulher com o menor, num quarto, e os outros dois meninos, mais nosso companheiro de viagem, no outro. O banheiro, minúsculo, ficava no quintal. Na cozinha, também diminuta, borbulhando ao fogão, o orgulho do anfitrião: festejado e aromático guisado de frango com pequi. Cardoso tinha um coração grande. Na madrugada chegaram outros necessitados e ele os acomodou, sem cerimônia, no quarto dos guris que, revoltados, cedo vieram dar parte. Aventura. Aventura é assim mesmo. Tentei ensinar.
Nos mapas da época, Mateiros era fim de linha, mas eu tinha um palpite que haveria uma trilha para chegar ao Maranhão. Não errei. Cardoso conversou com o tabelião, também conhecedor dos arredores, tirou as dúvidas, chamou o guia, indicou os passeios e a trilha que se iniciava no Prata, um quilombola de seu amigo Dotô, o qual deveria ser procurado para o prosseguimento da viagem. Desde Porto Nacional, só rodávamos em estrada de chão. Mas do Prata até Santa Luzia, no Maranhão, seriam apenas trilhas e picadas. Inexperiente, com os olhos tomados pelos cenários, não vi dificuldades. O dia, bem vivido, cheio de novidades, águas e fervedouros também ajudou na cegueira.
No meio da tarde chegamos ao Prata. O Dotô não estava, mas um sobrinho, o Manuel, se dispôs a nos guiar até a ladeira da Galileia, dali a 9 km, de onde ele voltaria a pé, ponto de descida para o Maranhão e para a trilha única, sem desvios, até o primeiro morador, uns 40 km após a ladeira. No planejamento, o pouso seria em Santa Luzia, primeiro vilarejo nas margens do vazio das savanas. No dia seguinte deveríamos alcançar Balsas e, em seguida, Barreirinhas, aos 30 de dezembro.
A ladeira da Galileia era apenas um rasgado descendo a encosta da Chapada das Mangabeiras. Um horror. Estreita, íngreme, um reino de valetas e pedras soltas. Manuel foi até o final e calçou como pode os trechos piores. Agradecidos, descemos. O carro equipado, rebocando uma carreta levando o jet, mostrou seu valor. Os campos de savana embaixo da serra eram um cenário deslumbrante. A solidão do lugar comprimia o peito. O tudo eriçava a pele. Aventura emocionante. Percorríamos a trilha de areia, sem rastros, entre os recortes de arenito da Chapada das Mangabeiras. Atravessamos o riozinho. Fazíamos o caminho inverso dos fundadores do Quilombo do Prata, gente de brio que fugia da escravidão no Vale do Gurgueia, no Piauí, e se encantou com o isolamento do lugar.
O final da tarde, na savana, se fez com uma garoa brilhante, aos últimos raios de sol. Nesse momento, a trilha correu um pequeno declive e ingressou no que parecia ser um leito seco, todo ladeado de mato fechado. Pouco adiante, árvores caídas cortaram o caminho. Escurecia rápido. Era preciso tomar uma decisão. Não pude alongar a exploração do entorno. Resolvi voltar. Em julho do ano seguinte descobri que estava há pouco mais de 3 km do primeiro morador.
No retorno, a noite fechou e a chuva cresceu. Nosso humor sumiu. Mas tudo foi bem até a ladeira da Galileia. Escalada difícil. A carreta com o jet deixei depois da primeira valeta. A subida levou mais de 2 horas. Tínhamos descido em dez minutos. Foi um festival de desafios. O carro subiu, com todas suas aptidões, até o meio da rampa enrugada. Daí foi só no guincho. No pior momento, com chuva forte, o cabo soltou do carretel e o parafuso de fixação caiu no cascalho. Os dois menores, os tinha colocado a frente do carro, junto a parede do barranco, para protegê-los da enxurrada e do despenhadeiro que nos ameaçavam. Foi um momento difícil. Foi também o fundo. Decidi que encontraria o parafuso. E o Thiago, o maior, que ajudava na luta, acertou a mosca. Com esforço, o cabo foi conectado. A subida lenta, reiniciada. Já próximo ao seu final, outro problema. Degraus mais altos impediam qualquer avanço sem o guincho tracionando. Os pneus só no derrape e não encontrávamos ponto de ancoragem. Resolvi forçar o carro, utilizando todos os meus truques. Ele deu um pulo. Nada mais. Sem alternativa, peguei o cabo e sai em direção ao topo. Ali bem na beirada, nascido e fincado, do ladinho da trilha, um pé de pau, filho único, uma Mangabeira, como soube mais tarde, no começo do engrossar. Experimentei o laço da âncora. Fechou milimetricamente. Soube que era por graça. Saímos do terrível enrosco.
No topo, terreno plano, liso e de areia. Recuperados, corremos para o Prata. Chovia e o Dotô estava em casa. Me apresentei, expliquei a situação, a necessidade de resgatar o jet e seguir viagem. Sob lanternas, Dotô e sua mulher, meia porta aberta, ouviram em silêncio. Quando acabei, rapidamente as duas portas foram abertas e a mulher marchou até o carro. Ela olhou as crianças e sem demora as tirou de lá. De passagem por nós avisou, Salomão, você faz o que quiser, mas essas crianças não saem da minha casa!
Não adiantou argumentar. Estávamos com algum preparo. Baixei bagagem e comida, muita, que tínhamos. O Dotô chamou os parentes jovens. Reuniu muita corda. Ficaram no Prata a mulher e os meninos. Sai com o Dotô e os seus. Parei o carro ao lado do pé de mangaba. Os homens desceram desenrolando cabo e corda. A carreta do jet subiu mansa, na força do guincho, guiada pela força, ainda maior, daqueles homens que a garoa parecia não tocar.
Para mim, o principal da história daquela viagem aconteceu na chegada de volta ao Prata. A chuva tinha parado. Era tarde, quase uma da manhã. As coisas estavam resolvidas. Não havia mais incertezas. Dotô indicou outra saída, pela chapada, caminho mais seguro, através de campos de soja. Eu tinha relaxado e foi ai que dei-me conta da arquitetura do Prata. Minha mulher esperava à porta da morada do Dotô. As crianças tinham banhando, jantado e dormiam. Dotô, sua mulher e duas filhas solteiras viviam em três pequenas edificações agrupadas. Todas de pau a pique, telhado de palha e chão batido. Um quadrado no quintal, cercado de folhas de palmeiras, sem teto, era usado para banho. Comecei a me sentir incomodado com todo o básico daquele lugar tão isolado e carente das estruturas que tanto prezava na vida urbana. Apesar de acampar frequentemente e ter viajado por lugares de poucas comodidades mundo a fora, o fato é que eu não sabia lidar com os extremos de simplicidades, como os do Prata. Minha mulher percebeu. Tentou me acalmar. Olhe, é tudo muito limpo e organizado, estamos bem acomodados. Que eu tivesse calma. Fui para o banho de cuia. O céu cheio de estrelas. A ceia estava fantástica de boa. Minha fome um exagero. Os relâmpagos voltaram na sobremesa. Fomos para a casinha que tinha-nos sido destinada e onde as crianças já dormiam. Respirei fundo. Empurrei a porta, lanterna na mão. Um lençol imaculadamente branco, esticando o colchão de casal. Uma visão estarrecedora. De pronto, fui tomado de um conforto estranho. Imenso. Lembrei do mundo, suas grandes cidades, o sofisticado dos hotéis que escolhi. Não posso explicar. Tentei antes. Esforço fútil. Nenhum daqueles lugares se comparava ao que estava ali diante de mim. Nenhum era melhor. Nos deitamos e eu estava em êxtase. Fechei os olhos. A chuva desabou na violência do trovão. Assustado iluminei o teto. O desenho do nó das folhas de palmeira me surpreendeu. Como era bonito assim iluminado. Depois foi a simetria, perfeita no encaixe de cada talo. Não havia goteira. Nada havia a temer. Aquele teto não era desse mundo. Adormeci rapidamente como o mais feliz e abençoado dos homens. Era madrugada de um trinta de dezembro.
Mais tarde, naquele dia, alterando nosso trajeto, pernoitamos no Hotel Camapuã, do Hugo, em Gilbués, sulzinho do Piauí. Antes, conseguimos almoço e combustível em uma fazenda de soja da chapada. O proprietário era de São Gabriel do Oeste(MS). Por causa desse almoço, retornei ao Prata e a Galileia, em julho. No dia 31, chegamos em Teresina, onde rompemos o ano com parentes avisados de última hora. Foi preciso trocar os quatro pneus do carro, antes de seguir para as Barreirinhas. A borracha deles, a ladeira da Galileia tomou.
Aquele ano começou em minha vida antes do calendário. Nosso réveillon, o meu ainda mais, foi no Prata, na casa do Dotô. A família em segurança, bem banhado, bem comido, bem abrigado sobre o branco do lençol que esticava o colchão e debaixo do teto desenhado da palha de palmeira. Sob uma simetria que desconhecia.
Nelson Araújo Filho
Muito bom Nelson w linda aventura!