Conto - Qual é o tempo que 90 anos tem?, por João Francisco Santos da Silva
- Alex Fraga

- há 3 dias
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Sábado no Blog do Alex Fraga é dia de conto com o médico clínico geral, acupunturista e escritor, João Francisco Santos da Silva, com "Qual é o tempo que 90 anos tem?"
Qual é o tempo que 90 anos tem?
“O tempo perguntou pro tempo qual é o tempo que o tempo tem. O tempo respondeu pro tempo que não tem tempo pra dizer pro tempo que o tempo do tempo é o tempo que o tempo tem”.
Não sei quem criou esse trava línguas, mas o inventor do tempo, e suspeito ser obra humana coletiva, foi muito feliz em sua criação. Contudo, uma questão um tanto aflitiva e mal resolvida, é que mesmo sendo algo que pode ser medido de tantas e tantas maneiras: em segundos, minutos, horas, dias, semanas, meses, anos, décadas, séculos, eras... E isso não acaba mais, todas as medidas não conseguem identificar a percepção e os significados do tempo para cada um de nós.
Uma pessoa comum consegue permanecer embaixo d’água sem respirar por uns 90 segundos, talvez muito mais, e dependendo da sensação provocada pela falta de ar, esse tempo poderá lhe parecer breve ou interminável. Vejam que interessante! O croata Vitomir Maricic no dia 14 de junho de 2025 estabeleceu um novo recorde mundial de permanência em apneia estática. Ele ficou sem respirar durante 29 minutos e 3 segundos. Para quem achou impressionante alguém ficar tanto tempo sem respirar, imagine então a façanha de dona Cacilda, minha mãe. Ela está completando 90 anos, e com toda essa idade já realizou, aproximadamente, 750 milhões a 1 bilhão de respirações. E o mais impressionante de tudo, fez isso de maneira despretensiosa, na maioria das vezes, ela nem se deu conta que estava respirando.
Reconheço que estimar o tempo por respirações possa ser algo impreciso, contudo, possui a vantagem de associar a passagem temporal a estados emocionais memoráveis. Mas por mera ironia existencial, as duas respirações mais importantes, a primeira e a última, fogem à regra da recordação por importância ou afetividade. A primeira respiração chorosa, fraca ou gritante, fica esquecida, bem guardada em nosso subconsciente e só acessível por meio de alguma sessão de hipnose regressiva. Já a derradeira em nossa passagem por aqui, essa eu acredito, deixa a lembrança para ser evocada em outra dimensão e com diferentes percepções de tempo e espaço.
Voltando aos milhões de inspirações e exalações que minha mãe fez em seus 90 anos de vida, umas mais rápidas, em momentos aflitivos, outras mansas, depois que o pior já havia passado, pausas provocadas em brincadeiras e ainda, algumas mais recentes, contra sua vontade. Só para ilustrar, talvez dona Cacilda se lembre de uma respiração que ela travou e ficou caída no chão sem respirar por alguns instantes. Não foi uma convulsão e não estava passando mal por nenhum tipo de doença. Na verdade, estava passando muito bem, e foi produzida por um mal feito provocado por ela mesma. A brincadeira com os primos era muito simples: subiam numa árvore e pulavam lá do alto para se “embaçar” no chão e ver quem ficava mais tempo “embaçado”. Nem sei se existe essa palavra na língua portuguesa, mas “embaçado” é a mesma coisa que ficar sem conseguir respirar: o diafragma dá uma travada por alguns instantes e a criatura arteira fica lá
estatelada no chão. Por ela estar comemorando 90 anos, significa, obviamente, que ela sobreviveu as suas “embaçadas” de criança.
Não querendo exorbitar em comparações, dizem que Deus realizou sua obra em “exatas” 154 horas bíblicas. Ou seja, seis dias. Durante o seu processo criativo, mesmo sendo o “todo poderoso”, depois de 90 horas, isso lá pelo final do quarto dia, Ele respirou fundo para tomar um fôlego a mais antes prosseguir na criação de tudo que ainda faltava. No seu projeto de mundo perfeito, Deus criou as coisas justas e necessárias, mas nem sempre bem compreendidas ou aceitas por nós, meros mortais. Exemplo disso é a existência de mosquitos famintos e homens convivendo em uma mesma praia paradisíaca. Todos, a praia, os homens e também os mosquitos, são criação e criaturas divinas. Mistérios da criação, difíceis de explicar.
Com minha mãe não está sendo diferente da metáfora bíblica. Coisas boas e não tão boas, mas inerentes à vida, vêm se sucedendo. Talvez ela tenha chegado nas 90 horas de seu “Genesis pessoal” e esteja tomando um fôlego para prosseguir em suas criações. Dia 26 de outubro é uma data especial e para celebrá-la, vamos recordar algumas das muitas praias paradisíacas pelas quais ela passou e se possível, ao menos nesse dia, deixando os mosquitos do passado do lado de fora do mosquiteiro.





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