Conto - Portal 23, por João Francisco Santos da Silva
- Alex Fraga
- 10 de mai.
- 5 min de leitura

Sábado no Blog do Alex Fraga é dia de conto com o médico clínico geral, acupunturista e escritor, João Francisco da Silva, com "Portal 23".
Portal 23
Cada vez que batem à porta sinto um aperto por dentro difícil de explicar. Como se fosse uma ou talvez duas contrações internas. Até os ruídos diferentes que tenho emitido nos últimos dias cessam após a batida na porta. Não sei o que está acontecendo comigo, nunca senti esse tipo de coisa. Tudo começou com a inesperada chegada da criança, ou melhor, da mãe da criança. Em geral elas, as crianças, chegam aqui sozinhas. Não sei porque essa veio acompanhada!
No início todas choram, lugar desconhecido, com pessoas estranhas. Sentem falta de suas mães. Aceitam porque não podem fazer nada. Quando as coisas vão bem, e apesar de já terem se habituado com as pessoas que podem entrar e sair do quarto pela porta, as crianças pedem para ir embora. Saudades da mãe, do pai, dos irmãos, do cachorro. Que bom quando conseguem sair andando, nunca se despedem de mim.
Não posso negar que com a chegada da mãe o ambiente ficou mais divertido. Da boca dessa mulher saem coisas preciosas. Ela gosta de cantar e o seu repertório me faz relaxar. Eu fui criado no sistema antigo, e mesmo já velho, ainda me mantenho firme e inflexível. E ela conta cada história interessante. Eu sou bastante discreto, mas uma vez, quase interferi quando ela interrompeu a história antes do final. Isso não se faz, provocar a curiosidade e depois deixar o ouvinte na mão.
Logo no primeiro dia ocorreu algo muito suspeito. Dois outros meninos entraram no quarto, mas não pela porta, e sim, pela janela. O que aquela mãe estaria aprontando? Agora a história começava a me interessar. Eu fico o tempo todo aqui entediado e sem poder sair. Imaginem a minha satisfação por tantas novidades em um único dia. Acostumado a ter como companhia apenas uma criança deitada na cama e adultos que entram e saem várias vezes ao dia, sem bater na porta ou pedir licença e que ainda me ignoravam como se eu não existisse. Que bom que essa mãe agora está aqui, pelo menos batem na porta bem antes de entrar.
— Ei! O que vocês pensam que estão fazendo aqui? Eu falei só por falar, sabia que eles não me entenderiam. Estão bem combinados com a mãe. Quando batem na porta os dois correm e se escondem aqui comigo. Eu não estou habituado a receber hóspedes, mas acho que sou hospitaleiro. Ofereço-lhes um bom espaço e os dois meninos cabem confortavelmente. Confesso que sou meio misantropo, e tive alguma dificuldade para me acostumar com a respiração e o cochicho dos dois pequenos dentro de mim.
Um dia fiquei orgulhoso comigo mesmo. Uma pessoa, desavisada do que ocorria aqui no quarto 23, entrou de supetão, sem bater na porta. Por um instante achei que seriamos descobertos. Os meninos se enfiaram embaixo da cama. Eu no desespero consegui, não sei como, emitir um barulho, como o de madeira dilatando-se com o calor. A pessoa, sem noção, veio direto em minha direção, e abriu minhas portas. Eu estava limpo, ela se deu por satisfeita e decepcionada saiu do quarto. Dessa vez tinha sido por pouco.
À noite os dois intrusos se despediam da mãe e do irmão doente. Eu sempre me emocionava nessa hora. Eles saiam pela mesma janela por onde haviam entrado pela manhã. A mãe dava as últimas ordens para o militar, subalterno em questões maternais, que vinha buscar os meninos. Pai e mãe prometiam que amanhã todos estariam novamente juntos. E assim foi durante mais de uma semana. Vou sentir saudade da família.
Na minha posição não consigo saber ao certo todas coisas que ocorreram. Mas a história do que aconteceu aqui no quarto 23 ficou tão conhecida que não é mais segredo para ninguém e dizem que foi mais ou menos assim:
Ele entrou fardado pelo portão principal. Hospital antigo de dois andares, o terreno ocupava o quarteirão inteiro e tinha um jardim cheio de árvores e plantas. Tempos antigos, de muita confiança, ninguém barraria um militar com duas crianças pequenas. O homem uniformizado levava um dos meninos no colo e outro pela mão. O pai avançou em direção a porta principal do prédio. Caminhava decidido, aparentando naturalidade e confiança. Quando chegou próximo ao acesso a porta de entrada, virou abruptamente para esquerda e foi contornando a lateral do prédio até dobrar na parede dos fundos. Durante o trajeto foi passando próximo as enfermarias térreas que, naquela hora da manhã, tinham suas janelas com venezianas de madeira quase todas abertas. Os pacientes e funcionários parados diante das janelas não deram atenção a presença dos três que seguiram sem levantar suspeitas.
O destino deles se encontrava na terceira janela da parede dos fundos do hospital. Lá dentro, em uma cama pequena de pediatria, um menino repousava com soro no braço e a mãe sentada em uma cadeira ao seu lado. O militar agora parecia um pouco mais nervoso. Cumpridor de ordens superiores, nunca fazia coisas erradas, mas por um bom motivo transgrediria sua norma de conduta. Passou primeiro o menino de seu colo para os braços da mãe. Depois colocou o outro maiorzinho no parapeito da janela que escorregou sem dificuldades para dentro do quarto.
Realizada a primeira parte do plano, o militar voltou a entrada principal e ficou sentado na recepção esperando por notícias do filho internado em isolamento devido a difteria. Longe dos filhos e da esposa, ele se permitiu que suas pernas tremessem e as mãos transpirassem. Depois ficava ali sentado por quase uma hora, conversava com o médico e ia embora. Mas antes, contornava o hospital e se despedia da família. Ele voltaria à noite, depois do trabalho, para buscar os dois meninos e levá-los para casa.
O menino maiorzinho tinha 6, o internado 5 e o menor 3 anos. Cada vez que a enfermeira entrava no quarto, os dois pequenos clandestinos corriam para dentro do guarda roupa. Curioso, que em um hospital, todos os funcionários tivessem o hábito de bater na porta e esperar por algum tempo antes de entrar. Naquela época não havia atendimento humanizado. As normas para isolamento de pessoas com doenças infectocontagiosas eram rígidas e elas deviam ser cumpridas sem exceções. Quem não aceitava tais regras, se pudesse fugia. Difícil saber os índices de evasão hospitalar.
Nos dias que durou a internação do menino doente, o quarto 23 da ala destinada ao isolamento pediátrico funcionou como uma espécie de portal. As pessoas que entravam nele só viam o queriam ver e elas não ouviam o que não queriam ouvir. O guarda roupa serviu para simular uma clandestinidade e o uniforme militar tornou-se um manto de invisibilidade. A magia ocorreu graças aos poderes da fada mãe, irredutível em separar-se de suas crias, ela desconsiderou qualquer hierarquia militar, regras administrativas e normas sanitárias.
PS: O Ministério da Saúde advertiria: não façam o que essa mãe fez.
João Garcia Francisco Marquez❤️❤️❤️❤️❤️❤️❤️❤️❤️❤️👏🏿👏🏿👏🏿👏🏿👏🏿👏🏿👏🏿👏🏿abre alas q ele tá chegando!