top of page

Conto - O Polonês melancólico , por João Francisco Santos da Silva

  • Foto do escritor: Alex Fraga
    Alex Fraga
  • 5 de out. de 2024
  • 3 min de leitura


Sábado no Blog do Alex Fraga é dia de conto com o médico clínico geral, acupunturista e escritor de Campo Grande, João Francisco Santos da Silva, com "O Polonês melancólico"


O Polonês melancólico


Antes de dormir releu a carta, e por obrigação, tomou os remédios que estavam sobre a mesinha de cabeceira. Resmungou consigo mesmo enquanto os engolia. Pensou que não tinha mais idade para fazer coisas inúteis como aquelas. Então, lhe veio a lembrança de quando ainda tinha idade para escrever cartas de amor. Não importa o que escrevia, e sim o que sentia a escrevê-las. A última carta, escreveu com mais dificuldade. Ksenia não a leria. Difícil escrever sem saber ao certo quem a irá ler, ou ainda, se será lida. Mesmo assim sentiu que precisava escrevê-la.

A noite não foi das piores, se comparada a tantas outras dos últimos meses. Acordou disposto e decidido a fazer o passeio. Se esperasse mais talvez perdesse a vontade. Vestiu-se com roupas leves para caminhada. Mas, ao colocar a calça lembrou que seu único cinto estava com menos furos que os necessários. Foi até a cozinha e, com um certo enfado, esquentou o garfo numa boca acessa do fogão. Com a ponta incandescente fez um último furo no cinto. Enquanto segurava o garfo, olhou para seus dedos e percebeu que haviam adquirido uma forma diferente. Emagrecidos, tornaram-se mais longos. Agora a aliança de Ksenia entrava com facilidade em seu dedo mínimo. Diferente daquela tarde de primavera na pequena capela de Kaplica Na Wodzie em que a aliança lhe parecia tão minúscula. Não precisaram de testemunhas. Entraram na capela quase encrustada na rocha e lá fizeram seus votos. As alianças amarelas trocadas selaram a união: “Ksenia mój ukochany: Ksenia minha amada” e“Haskel Moja Miłość: Haskel meu amor”.

Olhou-se displicentemente no espelho e lembrou-se que quando criança tinha medo de caveira. As órbitas vazias lhe causavam pavor. Ali diante do espelho, diferente de temor, conseguia sentir apenas indiferença. Antes de sair, verificou se estava deixando em casa o necessário: a carteira, as receitas e a carta. Para o passeio não precisava nem de dinheiro, nem dos remédios. De carro, em apenas 30 minutos chegaria próximo ao topo da pequena montanha. A partir desse ponto continuaria a pé em uma curta caminhada até o cume. Habituado a boas caminhadas no parque de Ojców, sempre com Ksenia ao seu lado, em outros tempos não sentiria dificuldade para chegar ao destino. Porém, agora sozinho, a subida foi lenta e cansativa. Vez por outra parava e respirava fundo, buscando um resto de energia para chegar ao final.

O caminho era ladeado por árvores baixas, ressecadas e de coloração opaca. Se Ksenia estivesse ali, veria a paisagem com outros olhos. Ela saberia exatamente quais eram as cores de todas as árvores e plantas, e para ela seriam muitas as cores. E onde ele

não mais conseguia ver, Ksenia lhe mostraria outras tantas variedades de flores. Depois de algum tempo, finalmente alcançou o ponto mais alto de sua subida. A montanha fazia parte de um maciço em forma de U. Na perna oposta do U em que Haskel chegara, havia uma cachoeira que se precipitava por quase 50 metros. Embaixo, no fundo do cânion, corria um rio pouco caudaloso, que possuía as margens recobertas por vegetação exuberante. Haskel surpreendeu-se por se deslumbrar com cenário tão lindo. Ali, à beira do abismo, ele conseguiu sorrir ainda mais uma vez ao se recordar de Ksenia. Sempre maravilhada com a natureza, o que para ele era à beira de um abismo e final de percurso, para ela seria a descoberta de um paraíso. Ele podia escutar a voz suave de Ksenia lhe convidando a descer até o rio. Com certeza, às margens do rio com sua terra úmida e fofa teriam avencas, samambaias e muitas borboletas coloridas. Afinal, o que ele ainda estava fazendo ali, a essa hora Ksenia já devia estar lá embaixo lhe esperando, pensou Haskel.


Nota do autor:

O dia 10 de setembro é oficialmente, o Dia Mundial de Prevenção ao Suicídio.

Se você está pensando em suicídio, procure ajuda!

Existem muitos recursos disponíveis para lhe ajudar a superar esse momento difícil. Se conhecer alguém que precise de ajuda e não souber o que falar ou que fazer, ofereça um abraço. Escuta ativa, presença e gestos de acolhimento podem fazer a diferença em situações críticas.

Além disso, você pode ligar para o CVV pelo número 188 ou também, acessar o site oficial para conversar com um voluntário. No mais, tente procurar também um profissional de saúde mental para um tratamento a longo prazo.

 
 
 

2 Comments

Rated 0 out of 5 stars.
No ratings yet

Add a rating
Adaiele Silva
Adaiele Silva
Oct 08, 2024

😍

Like

Guest
Oct 05, 2024
Rated 5 out of 5 stars.

❤️❤️❤️❤️❤️❤️

Like
bottom of page